Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Até onde a memória alcança

Por ocasião das festividades do ano novo judaico, em setembro último, os leitores de um dos mais influentes jornais brasileiros foram surpreendidos com uma informação aparentemente surreal, mas nem por isso fora da realidade. A matéria made in Germany da correspondente de O Globo, Graça Magalhães Ruether, intitulava o país de ‘o novo eldorado dos judeus’ e mostrava o estupendo ‘florescer’ da comunidade judaica na Alemanha que lotou as sinagogas de Berlim durante as cerimônias religiosas desse evento.

Palco de um dos mais cruéis e violentos genocídios em massa produzidos por um regime político, a Alemanha tem recebido de braços abertos os judeus originários principalmente da antiga União Soviética que para lá acorreram (cerca de 220 mil), a partir da queda do Muro de Berlim, em 1989.

Atualmente, a comunidade judaica acomodada na Alemanha tem se movimentando em busca de suas tradições nas 16 sinagogas existentes em Berlim e Munique. Para muitos, uma espécie de desforra sobre aqueles que há pouco mais de seis décadas quase lograram varrer do planeta seus compatriotas judeus. ‘O judaísmo voltou a florescer não só em Berlim, mas em toda a Alemanha’, celebra a porta-voz da comunidade judaica em Berlim, Maja Zeder. Hoje, 85 cidades alemãs dispõem de sinagogas.

Jovens não querem ‘remoer o passado’

Em outra reportagem, dessa vez do jornalista alemão Thorsten Schmitz, Berlim é comparada a Tel Aviv pela quantidade de israelenses que tomam conta da cidade durante todo o ano. ‘Há cinco anos, só havia uma ligação direta entre Tel Aviv e Berlim; atualmente pode haver três voos por dia. A Lufthansa oferece quatro voos diários para a Alemanha.’

Segundo o jornalista, que escreve para o jornal Südeutsche Zeitung, de Munique, a cidade é o destino preferido dos israelenses, antes mesmo de Barcelona e Praga. Quarenta e oito mil israelenses visitaram Berlim, em 2009, e dentre os turistas não europeus, os nascidos em Israel só perdem para os norte-americanos, ainda o principal contingente turístico em terra alemã.

Também cresceu a quantidade de israelenses que escolhe Berlim para residir ou para investir no seu mercado imobiliário. Entre 1999 e 2009, o número de israelenses que imigrou para a Alemanha aumentou em 50% e já existem bairros, como os de Kreuzberg e Friedrichshain, onde a presença de israelenses é considerável. O resultado é que duplicou a presença de estudantes israelenses nas universidades berlinenses.

Para os agentes de turismo de Berlim, os judeus mais jovens que visitam a cidade querem descobrir o novo rosto da capital alemã. Todos conhecem a história do Holocausto, já viram alguém com um número tatuado no antebraço e foram a Auschwitz, na Polônia, em excursão escolar, mas ‘não querem ficar remoendo o passado’. É comum encontrar turistas israelenses no antigo campo de concentração de Sachsenhausen carregados de sacolas de compras das lojas Zara e Bikenstock. Esse campo, situado a 35 quilômetros de Berlim, foi um dos mais ativos do regime nazista e lá foram executados cerca de 50 mil prisioneiros por fuzilamento, câmaras de gás e experimentos médicos.

‘Olhem para nós, nós não somos maus’

A diretora de programação do Museu Judaico de Berlim, Cilly Kugelmann, de 63 anos, avalia que o judaísmo da geração das testemunhas pertence à história. ‘A definição dos judeus pelo extermínio em massa está acabando’, afirma. Formada em história da arte pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Kugelmann nasceu em Frankfurt e estudou cinco anos em Israel. Apesar de reconhecer que a sociedade alemã, nesses 62 anos pós-Holocausto, desenvolveu um relacionamento com o período nazista no qual o assassinato em massa tornou-se o único paradigma, ela acha que o judaísmo não se beneficiou com o fato. Ao contrário. Em sua opinião, os seguidos e continuados alertas de representantes judaicos contra o antissemitismo, o neonazismo e o antissionismo subtraíram, em parte, uma imagem positiva do judaísmo.

Em entrevista ao portal de notícias da Alemanha Deutsche Welle, o diretor-geral do Museu Judaico de Berlim, W. Michael Blumenthal, de 84 anos, reconheceu que com a morte das testemunhas a qualidade da memória do Holocausto também vai mudar, já que a transmissão dos fatos se fará em segunda mão. Nascido na Alemanha, Blumenthal deixou o país em 1939, estudou nos Estados Unidos e chegou a secretário do Tesouro norte-americano na gestão do presidente Jimmy Carter, de 1977 a 79. Segundo ele, o Holocausto vai continuar sendo uma parte importante da história alemã, um acontecimento histórico que implica em responsabilidade. Blumenthal chama a atenção para a diferença entre culpa e responsabilidade. ‘As novas gerações não são culpadas pelos atos de seus antepassados, mas têm responsabilidade nacional que acredito que vai continuar sendo assumida.’

A nova geração de judeus da Alemanha almeja mudar esse modelo de relacionamento. ‘Eu quero me libertar dessa sensação de que, quando o assunto é minha religião, as pessoas sempre pensam: `Ah, você é judia.´ E imediatamente começam a prestar atenção no que falam como se estivessem pisando em ovos’, dizia a estudante de Ciências Políticas, Katharina Goos, em 2005. A jovem propunha uma maior abertura no convívio diário. ‘Nós podemos nos abrir para as pessoas de outras religiões e dizer: olhem para nós, nós não somos maus.’

O suicídio de um apátrida

Na mesma reportagem, o jovem Daniel Iranyl explicava os seus motivos para residir na Alemanha. ‘Aqui é um bom lugar para se viver, mesmo que alguns discordem. Eu me vejo como um judeu europeu e acho importante que as pessoas entendam que o judaísmo não esta limitado à tristeza. Somos pessoas felizes e eu amo Berlim.’

Voltando no tempo, em 1938 centenas de casas, lojas e sinagogas foram apedrejadas e incendiadas em várias cidades da Alemanha. Começava efetivamente o processo de extermínio em massa da comunidade judaica alemã naquele 9 de novembro que passou para a história como a noite das vidraças quebradas ou a Noite dos Cristais. Na época, mais de meio milhão de judeus vivia na Alemanha.

Com o fim da Segunda Grande Guerra, sobraram 15 mil judeus e nos 62 anos posteriores esse número foi se multiplicando até atingir a marca oficial de 110 mil. Quantidade respeitável de membros que, somada à onda de turismo específico, estimulou a mídia internacional, no decorrer de 2010, a enfocar a Alemanha sob um bizarro ângulo de cartão postal do Holocausto, aplicando-se ainda em propalar o tal renascimento judaico em um país salpicado de monumentos, memoriais, mausoléus e museus de lembranças e de mea culpa. Uma realidade que pouco surpreenderia o filósofo e pensador judeu Walter Benjamim (1892-1940), figura cultuada pela intelectualidade brasileira. É dele a frase-slogan : ‘Não há um documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie.’

Em 1939, Benjamim foi destituído de sua cidadania alemã, enquanto vivia na França, e passou a ser um ‘estrangeiro de nacionalidade indeterminada de origem alemã’. Nascido em Berlim, o autor de Teses sobre o conceito da História tentou em vão obter a cidadania francesa. Quando só restava a fuga para escapar à Gestapo, ele se viu impossibilitado de alcançar a liberdade pela falta de documentos legais. Deprimido, na noite de 25 de setembro de 1940, em um quarto de hotel na fronteira com a Espanha, cometeu suicídio ingerindo uma dose letal de morfina. Tinha 48 anos e embora somasse uma história pessoal enraizada na Alemanha e uma reconhecida bagagem literária, era um apátrida.

Uma missão quase impossível

Em 1989, o livro Modernidade e Holocausto, de um sociólogo judeu de origem polonesa, ganhou o prestigioso prêmio Almafi, concedido pela Associação Italiana de Sociologia à melhor obra do ramo publicada na Europa. Seu autor, Zigmunt Bauman, atualmente com 85 anos, atribuía à modernidade e suas técnicas de planejamento, organização e produção, um papel decisivo na consecução do Holocausto. Observava Bauman que ‘o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano’. Radicado na Inglaterra desde da década de 1970, o sociólogo criticava o afrouxamento dos mecanismos de lembrança em relação ao genocídio. ‘A autocura da memória histórica que se processa na consciência da sociedade moderna é mais do que uma indiferença ofensiva às vítimas do Holocausto. É também um sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida.’

‘Custa-me acreditar que meu pai tenha sido deportado daqui para o campo de Sachsenhausen’, afirma o israelense Amit Sonnenfeld, de 56 anos, em sua primeira visita à Alemanha, em setembro de 2010. Sua mulher Eynat acrescenta: ‘Berlim é completamente multicolor, e não tem nada que ver com as imagens da Alemanha que me acompanham desde a infância.’ Ambos, segundo a reportagem do jornal de Munique, se movimentavam esbaforidos e felizes pelas ruas de Berlim, carregados de sacolas de compras e animados com o circuito gastronômico que a cidade oferece.

Para Bauman, redimir o passado implicaria em atualizar o seu significado no tempo presente. Entretanto, a memória da história oficial é sempre percebida de forma linear, enfileirando fatos,datas e as diversas formas de poder que atuaram no contexto. No caso do Holocausto, os testemunhos dos sobreviventes acrescentaram uma segunda dimensão à história. Mas, no estágio atual – onde os campos de horror foram transformados em bem cuidados museus a céu aberto e o genocídio se recria em projetos arquitetônicos monumentais –, a globalização já aspirou e centrifugou os inevitáveis espantos e discordâncias, transformando-os em resíduos ou pó. Com os seus (aparentemente) ilimitados recursos de pasteurização sobre as sociedades midiáticas e marquetizadas, a globalização viabilizou o encontro mágico entre a mais alta tecnologia e as táticas de convencimento, tornando a busca de um sentido singular e contemporâneo ao significado do Holocausto, uma missão quase impossível.

O prognóstico de Orwell

O pensamento globalizado é uma das características do século 21 e aqueles cujas ideias possam de alguma forma desregular uma azeitada ordem midiática, construída sobre sólidas estruturas de poder, certamente terão grandes dificuldades em concretizá-las com algum êxito.

No caso específico do Holocausto, o aspecto ideológico e a sua vigorosa instrumentalização que permitiu, com sucesso, a implantação de um sistema industrial de matança dentro de uma sociedade civil informada e evoluída, caminha para ganhar ares de ficção, cercado dos cintilantes penduricalhos que a imaginação e a criatividade associadas à arte e a tecnologia do marketing são capazes de produzir. Sobrando disso tudo, talvez, em um futuro não muito distante, um shopping virtual de imagens – símbolo de uma época perdida no tempo – a ser acessado por alguns curiosos.

Essa complexa relação entre o presente, a percepção do passado e o poder, em suas formas manifestas ou subterrâneas, já tinha sido admiravelmente prenunciada pelo jornalista britânico Eric Arthur Blair (1903-1950), ferido no pescoço na Guerra Civil espanhola enquanto lutava contra o ditador Francisco Franco e seus aliados Mussolini e Hitler. Ele sabiamente prognosticou: ‘Quem controla o passado, controla o futuro; e quem controla o presente controla o passado’. Sob o pseudônimo de George Orwell, na novela 1984, o autor, que foi correspondente da BBC de Londres na 2ª Grande Guerra, delineou um axioma que em 1949, data da publicação do livro, poderia parecer delirante. Um livro que ainda fascina milhões de pessoas e que, de acordo com a pesquisa da revista Newsweek, publicada em 2009, foi apontado como segundo melhor livro de todos os tempos, perdendo apenas para o romance Guerra e Paz, de Leon Tolstoi.

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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ