Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tiririca não é o alvo certo

As eleições de 2010 terminaram com um comentário em particular dominando as fofocas da mídia: o caso Tiririca. Como a democracia brasileira pode gerar as ditas ‘aberrações’ similares ao comediante, eleito deputado federal pelo estado de São Paulo? Por quais razões surgiriam tais gargalos nas instituições políticas brasileiras?

As conclusões imediatistas responderiam em algumas direções, desde a reforma política até soluções que censurariam os direitos de determinados grupos sociais em buscar a ocupação de cargo eletivo. Bradariam os ‘caçadores de furos’ aos ouvidos dos ‘especialistas’ os apelos por explicações acerca dos motivos que não deixam a famigerada reforma política sair do papel; pediriam elucidações sobre mecanismos de veto para candidatos com características consideradas inadequadas.

Tudo isso resulta em ocultar as faces mais verdadeiras da novata democracia nacional, tratando de questões de intensa complexidade social com falsos remédios. Se procurarmos conhecer melhor os alicerces da nossa política, precisaremos ir além de sentenças estéreis, reducionistas e, por conseguinte, pouco ou nada informativas. Nesse sentido, cabe uma crítica ao próprio processo de produção do qual o jornalismo contemporâneo se tornou dependente, na medida em que os trabalhadores – sim, trabalhadores, a maior fatia de jornalistas – das empresas de comunicação operam pressionados constantemente, numa competição empresarial voraz, que origina, entre outros reflexos, a velocidade (time is money!) em detrimento da qualidade da informação.

O Brasil carrega na história das suas instituições políticas algumas apreciações gerais que não podem ser esquecidas. A despeito das relações econômicas, conquanto o escravismo oficial tenha sido o mais tardio do planeta, as elites do poder neste país congregam elementos específicos que demandam uma abordagem mais atenta. Não é senão forçosa uma análise do conceito de patrimonialismo.

Os primeiros golpes da reconquista

Já com Max Weber encontramos o termo, descrito como uma administração política em que as questões públicas e privadas se confundem e o limite entre ambas as esferas de poder é bastante imperceptível. Ele defende que ‘falaremos de Estado patrimonial quando o príncipe organiza seu poder político sobre áreas extrapatrimoniais e súditos políticos – poder que não é discricionário nem mantido pela coerção física – exatamente como exerce seu poder patriarcal’ (1999: 239/240).

Raymundo Faoro reúne as considerações mais promissoras acerca do patrimonialismo na construção da ordem estatal brasileira. Mesmo que sua obra central, Os donos do poder, não possa e nem deva ser delimitada no rigor do pensamento weberiano, a influência do sociólogo clássico está, no mínimo, entrelaçada aos argumentos de Faoro numa linha tangencial. Com efeito, ao iluminar o caráter específico da formação histórica deste valoroso território, torna-se palpável elucidar algumas questões que se manifestam nas mazelas do Estado e da política. Noutras palavras, a estrutura patrimonialista herdada do Estado Português correspondeu a uma importação quase absoluta dos setores administrativos da metrópole no período pós-descobrimento, reforçada com a vinda da Corte lusitana para o Rio de Janeiro, fugida dos intentos napoleônicos, nos idos do século 19. Reputado como o traço mais notável no desenvolvimento do Estado brasileiro, o patrimonialismo acompanhou o modelo institucional que se tornou historicamente padrão e sedimentou o Império, a Independência e a República. Faoro disserta sobre a precária distinção entre o público e o privado na edificação do Estado Português:

‘A coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso patrimônio rural (bens `requengos´, `regalengos´, `regoengos´, `regeengos´), cuja propriedade se confundia com o domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público do bem particular, privativo do príncipe […] A propriedade do rei – suas terras e seus tesouros – se confundem nos seus aspectos público e particular. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos da família ou em bens e serviços de utilidade geral’ (1977 [v. 1]: 04 e 08).

A representação pela autoimagem

Arrolados os fundamentais argumentos, pretendemos dizer que o Estado e as instituições políticas possuem nas suas vísceras o comportamento dos estamentos, sobretudo do patrimonialismo arraigado no passado e diluído no presente. Olhar de maneira mais profunda para os acontecimentos dessa natureza significa repensar uma série de atributos, e não apenas empolgar-se em discussões superficiais.

Por outro lado, as pesquisas em que trabalhamos durante três anos no Departamento de Ciência Política da UFRGS, que objetivavam demonstrar os perfis socioeconômicos de todos os candidatos a deputado federal em 2006, indicaram caminhos acerca da escolaridade destes indivíduos. Para se ter uma ideia, São Paulo consistia no ente federativo com maior número de concorrentes para o cargo. Das 952 campanhas legitimadas pelo TSE, 24 apresentaram pleiteantes declaradamente com ensino fundamental incompleto; 64 com ensino fundamental completo; 18 possuíam ensino médio incompleto; 179 com ensino médio completo; todos os 665 restantes declararam ensino superior completo ou incompleto.

Enfim, se o foco é na escolaridade dos sujeitos que estão galgando os postos legislativos, em 2006 aproximadamente 27% dos candidatos à Câmara, através do estado de São Paulo, não detinham alguma trajetória no ensino superior. Esse dado representa que 73% dos candidatos não devem ter sua intelectualidade colocada em prova, pelo menos se acreditarmos na formação oferecida pelas nossas universidades.

Ocorre no período democrático que passamos a vivenciar desde o final da década de 1980 uma percepção de que somos frágeis politicamente, de que a corrupção é endêmica e incorrigível, de que o parlamento advoga em causa própria e não incorpora seus pressupostos mais republicanos. Não obstante a validade dessas assertivas, que pouco contribui para uma análise séria, na realidade tem-se um país que está ampliando a entrada de pessoas que outrora não vislumbravam possibilidades de se inserir na vida política. Os mais de um milhão de votos de Tiririca não estão deflagrando a crise da representação política nessas bandas, na medida em que essa é uma definição que não passa por um simples cidadão isolado. Estão, sim, apontando de forma nítida que a população não vota exclusivamente por rostos bonitos, ternos e gravatas, tampouco por fraseologias baratas e manjadas. No inverso, esse fenômeno deixa crer que o povo pode querer ser representado por sua autoimagem, por pessoas simples, que passaram por dificuldades na vida, que muitas vezes não obtiveram êxito nos percursos educacionais. Isso é bom ou ruim?

O entretenimento como meio e fim

Um julgamento como esse incorrerá no perigo do preconceito, ou na consagração da ignorância. Nem uma, nem outra, diríamos. O fato central não requer esse veredicto, afinal os Malufs por aí não são analfabetos funcionais, nem os mensaleiros, nem os Collors e Dirceus. Os partidos ainda resistem com alguma postura ideológica, isto é, seus quadros não estão soltos no universo, fazendo o que bem entendem. Há uma estrutura de posições políticas por detrás dos panos, interagindo com o protagonismo dos atores, em que pese no caso de Tiririca essa interação pareça ser desfavorável ao indivíduo, provável fantoche da sigla que ostenta.

Os meios de comunicação dominantes atiram nos alvos errados, ou seja, disseminam sentimentos de exclusão calcados na ideia de que a política é coisa para a ‘inteligência’. Chega a ser incrível acreditar que o medo de Tiririca frequentar o Congresso possa substituir os debates nevrálgicos que precisariam pautar nossas grandes empresas de comunicação e, em diversos momentos, passam correndo por suas abordagens.

Enquanto polarizamos o assunto Tiririca, o Banco Central abandona a condução de um homem do setor financeiro e admite um funcionário de carreira, muito próximo das concepções econômicas de Guido Mantega. Seríamos utópicos se implorássemos aos mass media por uma cobertura aprofundada e densa sobre a economia; seríamos também se trocássemos o pedido, da economia para a política. Talvez só tenhamos sucesso, atualmente, no intuito de um jornalismo de qualidade, se as pautas importantes ficarem em segundo plano, e então aceitarmos o melhor que eles conseguem fazer: o entretenimento como meio e fim.

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Sociólogo, professor da rede pública estadual do RS e jornalista