Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

PT e a volta do cipó de aroeira

‘A questão é sair da crise e não entrar por engano em outra.’ (Wilson Figueiredo, Jornal do Brasil, 31/10/05)

Nas últimas 24 horas do Terceiro Reich, que morreria com a morte do Führer, Hitler designou como sucessor o jornalista, doutor pela Universidade de Heidelberg e seu ministro de Propaganda e Informação, Joseph Goebbels.

Goebbels suicidou-se um dia depois de Hitler, mas antes matou a mulher. E esta já matara os seis filhos do casal. Caluniadores não terminam bem, mas ainda assim um conselho de Goebbels é citado com freqüência: ‘Caluniai, caluniai, alguma coisa restará’. Informações podem evitar tragédias. Calúnias, não. O jornalista Goebbels não cumpriu seu ofício.

Como acontece em frases famosas, não se pode ter certeza que os conselhos sejam dele. Pode ser que sim, à semelhança de muitos outros que o repetiram, mas o dito popularizou-se depois que os italianos Giovanni Paisiello e Gioacchino Rossini musicaram O Barbeiro de Sevilha, comédia do autor francês Pierre-Augustin de Beaumarchais. Este incrustou o conselho em seu texto, extraindo-o de um dos ensaios do filósofo inglês Francis Bacon, que o recolhera da voz rouca das ruas. Em resumo, o aforismo não tem dono. Por que, então, é atribuído a Goebbels? Talvez porque tenha sido ele quem melhor personificou a sentença.

Procedimentos de exclusão

São Bernardo, patrono do município brasileiro onde nasceu o movimento de trabalhadores que levou Lula à presidência da República, sintetizou em metáfora muito simples os efeitos devastadores da calúnia. Disse ele numa homilia que caluniar alguém era como depenar uma galinha do alto da torre de uma igreja num dia de vento. Ao caluniado restaria recolher todas as penas, uma por uma.

Setores do PT foram useiros e vezeiros desta abominável arma de luta, brandida até contra colegas da agremiação, ou contra simpatizantes, por pessoas inescrupulosas que pensam valer tudo na luta política, certos de que os fins justificam os meios – outro aforismo, ora atribuído ao Maquiavel, ora aos jesuítas.

Saco de pancadas da mídia, naturalmente municiada pelos que se enfrentam em luta política, o PT vem sendo apresentado com valhacouto de pessoas sem escrúpulos, capazes de tudo na luta pelo poder. Não é verdade. O que dele se diz está presente não apenas em muitos outros partidos mas, principalmente, no gênero humano. Há sinais inequívocos da presença do Mal – inerente ao homem – no mundo, seja concebido da forma que o for. Apocalípticos vêem neste alvorecer do terceiro milênio o começo do fim de tudo. Enfim, cada um vê o medonho com os olhos que tem!

A verdade é que houve um pecado original em boa parte da mídia, desde os primeiros passos do PT, que se alastrou por toda a sociedade brasileira e que agora faz cair uma nuvem de decepção. Foi a indulgência plenária, distribuída previamente e sem escrúpulos, a todos os seus erros.

Alguns ágrafos, desprezando os livros, fizeram muitos crerem que ele, como partido, seria diferente dos outros em tudo. Mas se assim fosse, não seria um partido! Ao chegar ao poder, fosse em pequenas ou grandes agremiações, em prefeituras, estados e depois na Federação, setores hegemônicos do PT, manipulando as estruturas do partido, deflagraram procedimentos de exclusão, de perseguição, incluindo calúnias e diversas outras maledicências, certos de uma impunidade irrecorrível.

Bomba desarmada

Onde está o erro principal de setores da mídia como a Veja? Na satanização do Partido dos Trabalhadores e também de pessoas, escolhidas como alvos preferenciais, não pela mídia, mas por forças que a manipulam. O Partido Comunista, hoje aliado do poder, com suas bandeiras vermelhas tremulando na posse de Lula, já foi dado como depositário do Mal em si. Esta satanização impede a crítica, faz valer a propaganda, que triunfa.

Vejamos o caso da capa da edição da Veja desta semana (nº 1929, de 2/11/2005). Na verdade, nada tem de original. Cuba é a nação mais caluniada do mundo! Quando Fidel Castro recebeu o papa João Paulo II em Havana, disse uma frase desconcertante sobre a qual todos os governantes, incluindo o presidente Lula, deveriam refletir: ‘Esta noite muitas crianças dormirão na rua, nenhuma delas é cubana’.

Quando é que, não apenas o presidente Lula, mas também George W. Bush e muitos outros líderes mundiais poderão dizer o mesmo? A mídia tudo fez para esconder esta verdade: as crianças são bem tratadas em Cuba, têm saúde, educação, não estão vagando abandonadas pelas ruas.

Ostentando níveis de primeiro mundo em educação, saúde e cultura, Cuba é desde 1959 uma pedra no sapato dos poderosos. As esquerdas brasileiras (sim, no plural; aqui, unida é a direita), empenhadas na defesa de seus ideais, caem numa esparrela ao defender incondicionalmente Cuba. Os intelectuais brasileiros que lá estiveram sabem que não existe Estado de Direito na ilha. Mas no Brasil existe? Para quem? Para Paulo Maluf, existe, a ponto de até um ministro do STF condoer-se de ver pai e filho na mesma cela. A moça que roubou um xampu numa drogaria continua no cárcere há anos e já está cega de um olho por maus tratos recebidos na prisão. Para ela, o Estado de Direito não existe. Nenhum ministro do STF teve pena dela! Nem de todos os presos pobres, muitos do quais com penas já cumpridas, que continuam nos cárceres.

Entretanto, como lembrou Antonio Candido, entre os deveres dos intelectuais está o de pôr ordem nas idéias, esclarecer. Não se cobre o roto com o esfarrapado. De nada serve o remendo. Este erro palmar vem sendo cometido há anos!

Veja não provou o que disse em sua reportagem. Lida com cuidado, a fonte é um morto. Se todos fossem condenados por conversas à beira de copos, não haveria cárceres suficientes. Esse tipo de reportagem desmerece o percurso da revista. Fundada nos tempos sombrios da ditadura militar, granjeou a respeitabilidade pública, nacional e internacional, por um jornalismo de qualidade.

De uns tempos para cá, porém, deu em fazer um estranho jornalismo. Não informa, tenta persuadir – como fez na questão do recente referendo sobre as armas. Nas denúncias de falcatruas do PT, o partido é involuntariamente seu grande aliado. Porque, ao negar o que não pode negar, em vez de fazer um mea culpa, como ensaiou Tarso Genro ao assumir a presidência do partido, e expurgar aquelas práticas denunciadas, comprovadamente ilícitas, entrincheirou-se em paliçadas frágeis, que resistiam por alguns dias apenas, algumas caíam até em menos tempo, em horas.

Câmeras em elevadores, raio X de aeroportos, como negar tantas evidências? E o presidente Lula lamentavelmente tomou o mesmo caminho: uma hora, se diz traído; outra, que todo mundo faz o que é denunciado, como se o ilícito deixasse de ser crime por causa disso. Que pena que não foi seguida a estratégia da humildade como no caso Larry Rohter. A ponto de expulsar do Brasil o jornalista, o que seria uma vergonha internacional, o governo recuou e desarmou a bomba. Agora, não: todos parecem querem apagar incêndio com gasolina.

Sinais alarmantes

George Bush invadiu uma nação soberana apoiado em grossa mentira: o Iraque teria armas de destruição em massa. Não tinha. Mas até que os próprios EUA admitissem isso, milhares de vidas, de militares e de civis, incluindo crianças, idosos e doentes internados em hospitais, foram perdidas numa guerra doida. Canhões romperam museus e bibliotecas que guardavam patrimônios da Humanidade. Semanas depois da invasão, peças de cinco milênios eram negociadas no mercado negro em ruas de cidades americanas. Mas nada disso recebeu e nem vai receber em Veja o merecido destaque.

Já os dólares de Cuba, denunciados de uma forma no mínimo estranha, estão cumprindo seu efeito devastador antes que possa ser provada a veracidade da reportagem. Um disse uma coisa, outro disse outra. Veja entrou no diz-que-diz-que. Isso tem um nome: é mau jornalismo.

Reitere-se: o próprio PT, que move seus quadros para tapar o sol com peneiras, jogando um cobertor de silêncio sobre crimes diversos, é ator involuntário da onda que contra ele se ergueu na mídia. Se não por dedução, por intuição o vulgo tira suas conclusões: por que o Ministério Público, antes visto como um aliado do PT, agora vem sendo satanizado também? Por que a imprensa e as CPIs, antes vistas como detergentes da sujeira, agora são vistas como procedimentos a evitar?

Pessoas de bem, anônimas, deram seu tempo, seu trabalho e até a vida para levar um operário à presidência da República. Não por que fosse um operário, mas por encarnar um projeto ético de governar. Uma vez no poder, a debandada começou em seus próprios quadros, ao verem que no poder valia tudo, como para os outros, quando a perseguição aos discordantes foi o único recurso de que lançaram mão para evitar a crítica.

Aliás, alguns foram perseguidos, dentro e fora do partido, por deixarem de endossar, por ficarem em silêncio obsequioso que a si mesmos impuseram. Em algum momento esta questão, decisiva para o exercício do poder numa sociedade democrática, haverá de ser encarada. É a única saída possível para que o governo do presidente Lula seja defendido naquilo que ele tem de ético, de compromissos com a sociedade brasileira.

Há sinais alarmantes. Quando um homem como Frei Betto deixa de ser assessor do presidente por não encontrar mais condições de exercer a função para a qual foi chamado; quando um intelectual como Tarso Genro é ejetado do ministério da Educação para sanear o partido e internamente perde a bandeira da mudança, temos um quadro preocupante.

Pão dormido

No ‘Caderno B’ do Jornal do Brasil (31/10/05), Amarildo, em charge intitulada ‘No dia Saci…’, apresenta uma seqüência esclarecedora em frases devidamente ilustradas:

** ‘Eu não sou corrupto'(proferida por José Dirceu);

** ‘Eu não estou com aftosa’ (uma vaca);

** ‘Nós não vamos ser rebaixados’ (Vasco e Flamengo);

** ‘Somos todos honestos’ (a frase está sobre o prédio da Câmara);

** ‘Vocês acreditam na gente, né?’ (Saci-pererê).

A charge ilustra artigo de Wilson Figueiredo, de uma lucidez que quase nos deixa cegos, concluído assim:

‘Se dormirem no ponto (de vista), os adversários de Dirceu acordarão com ele operando por controle remoto o que resta do governo, como faz com o PT onde já vigoram as mudanças para deixar tudo do mesmo jeito. A questão é sair da crise e não entrar por engano em outra’.

Sábio Wilson Figueiredo! Tomara que tenha sido lido. Sábio Amarildo! Tomara que tenha sido visto! Mas se os setores hegemônicos mandassem na publicação, provavelmente artigo e charge seriam censurados por aqueles mesmos que intentaram um instrumento para controlar a imprensa e, vencidos pela opinião pública, foram reprimidos pelo presidente por não terem sabido defender o projeto.

Questões como essas estremecem qualquer um que faça da palavra a sua ferramenta de trabalho ou meio de expressão. Veja-se o que disse o cientista político Fábio Wanderley Reis, professor da UFMG, no Estado de S.Paulo (31/10/05, pág. A7): ‘É muita cara-de-pau dizer que não devemos ver crime em caixa 2’.

A crise tem saída porque toda crise tem saída. Aliás, tem mais do que uma. O problema é, como sempre, encontrá-la. Coincidiu que a crise do governo Lula encontrou não apenas uma sociedade em crise, mas também uma imprensa em crise.

Foi simplesmente desolador constatar que quando Veja veio às bancas no sábado – a revista despreza seus assinantes, que mereceriam melhor tratamento, e só a recebem domingo pela manhã, nas grandes cidades – os jornais de domingo já estavam impressos, alguns deles nas bancas ao lado dela. Nisso, a revista, semanal, deu um banho nos diários. Também isto é desconcertante.

Se as padarias seguirem o exemplo de nossos jornais, comeremos apenas pães dormidos.