O jornalismo é uma atividade onde o profissional deixa muito de si para a produção de boas matérias. Ou seja, trata-se de uma área que exige, incessantemente, certa doação e entrega deste profissional. Em nome do direito e do dever de informar a sociedade sobre os graves casos de homicídios, exploração sexual, tráfico de drogas, pedofilia e demais temas que constituem a realidade cotidiana, o jornalista investigativo, usando de sua especialidade – e, por vezes, auto-suficiência – ultrapassa alguns limites e cria certo abismo entre a profissão e a sua condição humana.
A rotina de um repórter é desafiadora, pois envolve investigação, escrita e reescrita, entrevistas, coleta de dados e a divulgação daquilo que ocorre em lugares de alto risco. Assim, o ‘tornar público’ é apenas uma parte da atividade. Esta rotina, que envolve o contato com a dura realidade brasileira, choca-se com a condição humana do jornalista. Munidos de câmeras e demais equipamentos, muitos repórteres ocupam territórios dominados por poderes cruéis e ditatoriais, de traficantes de drogas, políticos corruptos e outros criminosos que em nada prezam pela vida. Para fazer esta mediação ou para cumprirem a missão de informar, alguns jornalistas doam-se em prol da causa social e em defesa dos mais fracos. Nesta atitude, colocam sobre si responsabilidades que excedem a tarefa jornalística.
Este comportamento ilustra-se no ditado: ‘O médico pensa que é Deus, o jornalista tem certeza.’ Nesta incessante busca por certeza, cremos que o profissional não pode colocar o jornalismo à frente de sua vida. O repórter deve seguir princípios guiados por uma reflexão do trabalho jornalístico, que é a incansável perseguição pela objetividade dos fatos. Mas, em contrapartida, existe sua condição humana, das relações familiares e do desejo de voltar para casa no final do dia.
O cinema e o jornalismo de investigação
O jornalista investigativo percorre a linha tênue do possível e da via perigosa. Tomado pelo direito de informar, muitas vezes vai ao encontro do abismo, como presa rumo ao predador. Seu conhecimento é pequeno em comparação ao arsenal vigilante mantido pelas organizações criminosas. Perdem-se grandes repórteres em nome do direito de informar sem medida. Não são poucos os exemplos de jornalistas agredidos, espancados, torturados e assassinados. São vidas jogadas fora para atender ambições individuais, políticas e corporativas, que muitas vezes destoam do interesse público ou da sua condição humana. O gaúcho Tim Lopes foi uma figura marcante nesta fascinante atividade de informar/denunciar os males e desvios sociais. Arriscou-se ao ir a uma favela para realizar reportagens sobre o tráfico de drogas e a exploração sexual de menores: foi descoberto e cruelmente morto.
Esta tragédia colocou em pauta a seguinte questão: até aonde o jornalista deve se arriscar para informar?
No filme Tropa de Elite II, O Inimigo Agora é Outro, de José Padilha, Clara, personagem da atriz Tainá Muller, está fazendo uma matéria investigativa sobre o tráfico. Mas, como o próprio Capitão Nascimento diz ‘Jornalista é curioso’, ela vai além na sua apuração e se mete no covil dos bandidos. Lá, descobre informações bombásticas do envolvimento da polícia e de políticos com o crime organizado. No filme, a repórter liga para outro jornalista na redação contando tudo o que viu. É alertada para sair imediatamente, pois os bandidos poderiam chegar a qualquer momento. Tomada pela emoção da descoberta, a repórter tem sua curiosidade cada vez mais atiçada quando depara com as provas da ligação da milícia com o tráfico de armas. Na sequência da cena, eles são descobertos e agredidos pelos bandidos; as máquinas fotográficas e gravadores são apreendidos. Os jornalistas são executados a sangue frio e seus corpos são queimados para que nenhum vestígio permaneça. O filme faz um bom paralelo entre a ação do jornalista em querer fazer uma grande matéria a todo custo e um jornalismo que valoriza a informação bombástica em detrimento do jornalista.
Informar é sinônimo de se arriscar?
Este exemplo cinematográfico, mas possível e real para quem exerce a missão de informar, é uma das diversas armadilhas da profissão, que não dignifica a categoria e só coloca o profissional em uma situação de medo e sofrimento, diante de um mundo que não pode ser concertado unicamente por ele.
No livro Arte de Fazer um Jornal Diário, Ricardo Noblat faz duras críticas a esse tipo de comportamento de arriscar a vida por uma informação: ‘Tim Lopes se expôs ao risco de morrer porque quis, porque foi autorizado por seus chefes a fazê-lo e também porque grassa cada vez mais por toda parte um tipo de jornalismo que não distingue o que interessa ao público do que é de interesse público’, afirma. E continua Noblat: ‘Há ainda na tragédia protagonizada por Tim Lopes um outro aspecto que cobra uma reflexão urgente e profunda dos jornalistas e dos seus patrões. Porque sou jornalista e porque vivemos em uma democracia estou liberado para valer-me de qualquer recurso que assegure à sociedade o direito de tudo saber’, diz. Porém, o escritor colombiano Gabriel García Márquez descreveu como uma paixão insaciável pelo jornalismo que leva jornalistas a cometerem estes atos.
Ricardo Noblat ainda reflete sobre as práticas jornalísticas que priorizam a informação ao invés do jornalista. Estas práticas degradam a profissão e põe em risco a vida de muitos profissionais que agem muitas vezes sem o livre arbítrio e viram reféns da inconsequência, do crime e da ação informativa desmedida.
Por outro lado, temos o exemplo de Vladimir Herzog, jornalista torturado e assassinado por exercer com radicalidade a missão de informar. A vida de Herzog é referência para a democracia e sua morte uma evidência dos limites e consequências da profissão.
Enfim, o jornalista deve se colocar em situação de risco por uma reportagem investigativa? Informar é sinônimo de se arriscar?
Em que medida a realidade, muitas vezes cruel e desumana, a que ele é levado a informar, é maior do que as suas possibilidades de vencê-las?
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Estudante de Jornalismo na Unisinos e doutorando em Comunicação da UFRGS