Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tecnologia sozinha não liberta ninguém



‘É tarefa dos governos, e não da imprensa, manter os segredos enquanto possam, e não serei eu a discutir esse direito, certamente legítimo, desde que isso não encubra fatos dolosos ou enganosos. Mas o principal dever de um jornal consiste em publicar aquilo que tenha averiguado e buscar as notícias onde possa consegui-las.’


Estas são as conclusões de um longo artigo publicado no domingo (19/12) com grande destaque no El País e assinado pelo diretor de Redação, Javier Moreno (ver ‘O que os governos ocultam‘). O maior e mais importante diário de língua espanhola e também um dos mais respeitados do mundo é, no Grupo dos Cinco, o campeão de aproveitamento dos informes do Wikileaks. Na mesma edição dominical, o EP publicou 9 páginas com revelações, análises e depoimentos relacionados com o site criado por Julian Assange (todas as menções ao grupo de veiculadores referem-se aos cinco pioneiros).


Javier Moreno começou como químico, depois foi atraído para o jornalismo ao qual se dedica com corpo e alma. É um espanhol tranqüilo, sossegado, nada veemente – e absolutamente convicto. Suas conclusões são impecáveis. E óbvias: governos devem se encarniçar na defesa dos seus interesses e a imprensa deve empenhar-se nos seus: conseguir, averiguar e publicar notícias atendendo suas responsabilidades perante a cidadania.


Conspiração internacional


A coisa pega nos significados do verbo averiguar – apurar, verificar, inquirir, duvidar. Ainda é válido o desabafo do então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, a um interlocutor norte-americano reconhecendo a ‘loucura e perversidade’ do esquema do mensalão? O desabafo se deu em 2005, há cinco anos. Nada mudou de lá para cá? Em que circunstâncias ocorreu a confissão? Qual o tipo de relacionamento entre o principal assessor da Presidência da República e um diplomata estrangeiro?


O Globo e Folha de S.Paulo reproduziram o informe do Wikileaks sobre o mensalão (segunda, 20/12), mas apenas o jornal paulista tentou uma averiguaçãozinha: falou pelo telefone com José Dirceu em Lisboa e publicou um burocrático ‘outro lado’ de 15 linhas.


O El País está levando a coisa a sério; o verbo ‘averiguar’ é para valer, as manchetes se sucedem, envolvem todos os tipos de assuntos e países, não se limitam à pauta doméstica. Com os respectivos desdobramentos. De centro-esquerda, mas não antiamericano, o jornal sente-se à vontade para denunciar em editorial o pacto entre o governo socialista e a oposição (francamente direitista) com o objetivo de não valorizar os informes do Wikileaks (segunda-feira, 20/12, ‘Balance provisional‘).


Este mesmo rigor foi aplicado na primeira entrevista exclusiva concedida por Julian Assange depois da sua libertação (20/12). Além de detalhar as humilhações que sofreu durante os nove dias na prisão inglesa, o ciberativista denuncia as contínuas ameaças de morte que ele, seus filhos e advogados vêm recebendo. E explicita a origem dessas ameaças: ‘Membros das forças armadas norte-americanas’. Puro delírio – é evidente –, mas não cabe ao jornal maquiar a figura e o temperamento do parceiro.


O El País também preservou na entrevista de Assange a frontal acusação ao The Guardian – do Grupo dos Cinco – que teria omitido informações sobre as duas suecas que o acusam de violação sexual. Assange serve-se desta omissão para insinuar uma sutil conspiração internacional com o objetivo de desacreditá-lo:




‘El gran poder crea un ambiente en el que los individuos, prácticamente, chupan de lo que perciben que quiere el poder. En cada organización o grupo puede haber instrucciones directas, pero cada individuo y grupo actúa del modo que percibe que maximiza sus propios intereses.’


Jornalismo sem jornalistas?


Paranóia? Fadiga? Erro estrutural: o Wikileaks foi montado a partir de uma figura central, um Quixote digital – o desgaste era inevitável e já estava visível no contraditório perfil que o diário espanhol traçou de Assange muito antes do megavazamento. Também inevitável uma cisão nas hostes do Wikileaks pela própria velocidade em que se deu sua ascensão. A cria, o Openleaks, ficou com parte da equipe, mantém os mesmos objetivos e serve-se de outro esquema: mais participação e menos personalismo.


A quimera da transparência está sendo badaladíssima, mas não se materializou. E assim ficará até que as volumosas pautas fornecidas pela guerrilha cibernética sejam averiguadas por repórteres capazes de fazer as perguntas certas e duvidar das respostas enganosas. Jornalismo sem jornalistas, nem com robôs e engenhocas.


Como anotou o historiador inglês Timothy Garton Ash (na mesma edição do EP): a tecnologia sozinha não liberta ninguém. As pessoas é que libertam as outras pessoas.