‘Internet: infraestrutura icônica de nossa era’ (secretária de Estado Hillary Clinton, antes do vazamento dos memorandos)
Essa trapalhada monumental, sem precedentes, desencadeada por agentes públicos infiéis, que despejaram na mídia, com fragor de tsunami, espantosas revelações extraídas de arquivos secretos estadunidenses, traz à baila a necessidade de um debate mundial urgente, amplo, geral e irrestrito sobre a comunicação social nestes tempos de tecnologia eletrônica cada dia mais sofisticada. É chegada a hora de se cuidar da implantação, para usar um termo da moda, de um marco regulatório para as divulgações por meio da internet. Um poderoso instrumento jurídico-legal, de aplicação universal, que concilie sabiamente os sagrados direitos à liberdade de expressão – apanágio da democracia autêntica, sem contrafações – com a preservação do sigilo de relevantes informações pessoais ou institucionais que componham a colossal massa de dados em condições de ser acessada, a cada momento, pelos engenhosos instrumentos da revolução cibernética.
Enquanto essa complexa conjugação de interesses não se processa, as normas a observar na operacionalização da internet não podem, por mais que isso provoque contrariedades aqui e ali, ser outras além daquelas consagradas internacionalmente no capítulo da liberdade de expressão. O mundo precisa aprender a lidar com as sutilezas da questão. O chamado ‘jornalismo investigativo’, do tipo praticado pelo hoje célebre WikiLeaks, de conformidade com as leis adotadas no consenso democrático, não é atividade ilegal. O vazamento de arquivos oficiais pode levar, sem dúvida, a incriminações legais dos responsáveis pela violação dos segredos. Mas isso se aplica, lógica e apenasmente, a servidor que quebre a fidelidade devida à organização a que esteja vinculado. Nunca, jamais, a veículos e representantes desses veículos que tenham tido acesso à matéria vazada e se disponham a divulgá-la. Não fosse esse o entendimento correto, o procedimento a seguir, a lista de comunicadores alvejados com ‘punições legais’, como ocorre nas ditaduras, estaria sendo a esta altura enormemente acrescida, também nos países democráticos, de legiões de jornalistas incriminados pela autoria de trabalhos contendo revelações confidenciais.
Tecnocracia, diplomacia e CIA não rimam com democracia
Assim vistas as coisas, há que se reconhecer que contra o jornalista Julian Assange, principal figura do WikiLeaks, ONG com mais de dois mil colaboradores, não pode ser invocado dispositivo algum, consagrado pelo direito universal, que venha justificar seu enquadramento penal. O mesmo princípio se aplica, naturalmente, aos jornalistas que têm assegurado cobertura às informações acerca das trapalhadas da diplomacia americana. Como ninguém ignora, em repetidas ocasiões, assuntos confidenciais transmitidos via internet já foram entregues à mídia envolvendo outros governos e situações. A própria Casa Branca deles se beneficiou. Nem é por outra razão que a secretária de Estado Hillary Clinton, num pronunciamento recente, ao contrário do que anda esbravejando agora, cantou em verso e prosa ‘a liberdade da internet’. Sua, textualmente, esta definição da internet: ‘Infraestrutura icônica de nossa era’. Uma era em que Hillary constata, com precisão, ‘há governos que, como as ditaduras do passado, miram pensadores independentes que usam essas ferramentas’. Ora, veja, pois!
Diante de tudo que aqui se põe soa, por conseguinte, ridícula e inconvincente a pretensão estadunidense de rotular como delinquente foragido o ousado mentor do WikiLeaks. Afigura-se também não menos grotesca a ‘ajuda’ do governo sueco ao expedir o alerta, com mobilização até da Interpol, com vistas à detenção de Julian Assange pelo ‘grave delito’ de praticar sexo sem uso de preservativos. Os culpados por todas tropelias têm que ser localizados no contexto amalucado onde os fatos, sabe-se lá por qual motivo obscuro, foram germinados. Os bastidores da Casa Branca. A farta sinalização pelo malfeito é dada por uma burocracia e tecnocracia ineptas, uma diplomacia confusa, um serviço de inteligência – leia-se, CIA – incompetente. No episódio em tela evidencia-se que essas expressões – tecnocracia, diplomacia e CIA – não rimam sempre, na essência, com democracia.
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Jornalista