A grande imprensa brasileira se acostumou a definir sua modernização como sendo alteração gráfica, de formato e espaço da notícia. Tempos atrás, pensava que modernização era estilo de texto. Mas resiste em pensar que aggiornamento, hoje, deveria ser de linha editorial. Resiste porque não consegue dialogar com a notícia.
O jornal Folha de S.Paulo, que afirma publicamente que tem rabo preso com o leitor, e apenas com ele, afasta-se da notícia quando utiliza o perfil e ideário de seu leitor como guia da linha editorial. Adotemos a Folha como case. Em maio deste ano, entre os leitores da Folha de S.Paulo, Serra aparecia em primeiro lugar na intenção de votos, com 54%. Marina era a preferida de 18% dos leitores do jornal e Dilma amargava um terceiro lugar, com 15%.
Pesquisei o perfil do leitor da Folha a partir desta discrepância entre leitura da realidade e realidade concreta. Comparei os dados de 2000 e 2007. Em 2000, o leitor-síntese da Folha (segundo o Datafolha) tinha formação superior, casado, empregado no setor formal da economia, renda individual na faixa que vai até 15 salários mínimos e familiar na faixa superior a 30 SM. Um leitor enquadrado como classe A ou da B, segundo o Critério Brasil. Em 1988, representavam 28% dessa amostra os leitores que tinham mais de 50 anos. Em 2000, pelo menos quinquagenários perfaziam 41% do total dos leitores principais no Estado de São Paulo. Esse movimento deu-se sobretudo pela queda na participação dos mais jovens (até 29 anos). Eles eram 29% em 1988 e hoje são 14%, o que significa uma diminuição que ultrapassa 50%.
Elite desiludida
Em 2007 o leitor-síntese era ainda mais peculiar e distante da média do perfil médio do brasileiro: 90% pertenciam às classes A e B; 69% liam revistas e 57% buscavam notícias na internet.
Sobre questões consideradas polêmicas, os leitores se posicionaram a favor do casamento gay, da legalização do aborto, da reforma agrária e contra a pena de morte. Eram, por outro lado, contrários à descriminalização da maconha e a favor da redução da maioridade penal. A profissão com a maior participação individual entre os leitores do jornal era a de professor: 12% lecionam. Na seqüência, vinham advogados (7%) e engenheiros (4%).
A comparação com o levantamento realizado em 1997 mostra um declínio na proporção de católicos: embora continuem sendo a maioria do leitorado, houve uma diminuição de dez pontos percentuais (de 65% para 55%) e um aumento dos que se declaram sem religião (de 10% para 18%). Outras mudanças notadas neste ano aconteceram no campo político. Cresceu a desilusão com os partidos – a maioria, 57%, declara não ter simpatia por nenhum deles (em 2000, eram 45%) –, houve um aumento dos tucanos (são 18% dos leitores) e uma perda de 21 pontos percentuais dos petistas (caíram de 34% para 13%).
Resumindo: os leitores que se declaram tucanos superaram os que se declaram petistas; compõem a elite do país; maioria desiludida com partidos políticos; são mais velhos e oscilam em relação a temas polêmicos. Finalmente: as tiragens de jornais impressos caem de ano a ano, embora a Folha mantenha a liderança nacional.
Tese furada
Vejamos a vendagem dos jornais. 2009 foi um péssimo ano porque refletiu a crise de investimentos (ao menos no primeiro semestre) provocada pelo estouro da bolha imobiliária norte-americana. No ano passado, a circulação somada dos 20 maiores jornais brasileiros caiu 6,9% em relação a 2008, segundo dados compilados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC). Os jornais que apresentaram as maiores quedas foram os do Grupo O Dia, do Rio de Janeiro – O Dia e Meia Hora recuaram 31,7% e 19,8%, respectivamente. Na sequência aparecem Diário de S.Paulo (declínio de 18,6%), Jornal da Tarde (-17,6%), Extra (-13,7%), O Estado de S.Paulo (-13,5%), Diário Gaúcho (-12%), O Globo (-8,6%), Folha de S.Paulo (-5%), Super Notícia (-4,5) e Estado de Minas (-2%). As informações são do jornal Meio & Mensagem.
Os seis diários que apresentaram circulação maior que a de 2008 foram Daqui (alta de 31%), Expresso da Informação (15,7%), Lance! (10%), Correio Braziliense (6,7%), Agora São Paulo (4,8%) e Zero Hora (2%). Correio do Povo, A Tribuna e Valor Econômico registraram em 2009 números praticamente idênticos aos do ano anterior. A liderança na circulação manteve-se nas mãos da Folha de S.Paulo, que encerrou o ano com média diária de 295 mil exemplares. Em seguida aparecem Super Notícia (289 mil), O Globo (257 mil) e Extra (248 mil). Em quinto lugar, ainda segundo os dados do IVC, ficou O Estado de S.Paulo (213 mil), à frente do Meia Hora (186 mil) e dos gaúchos Zero Hora (183 mil), Correio do Povo (155 mil) e Diário Gaúcho (147 mil). O top 10 se completa com o Lance! (125 mil).
A liderança da Folha de S.Paulo permaneceu com uma vendagem média diária de 21.849 exemplares comprados nas bancas em todo o território nacional entre janeiro e setembro de 2009. Lembremos que em outubro de 1996, a venda avulsa de uma edição dominical da Folha chegava a 489 mil exemplares. O ano foi ruim, mas a tese da grande imprensa se agarrar à classe média tradicional para manter assinantes e influenciar na agenda política do país, já fazia água.
Fé na família
Saltemos para 2010. Segundo o IVC, entre janeiro e junho de 2010, a média de circulação dos jornais no Brasil foi de 4.255.893 exemplares por dia. O final do primeiro quadrimestre de 2010 já havia sido positivo para os jornais, com alta de 1,5%. Segundo o presidente executivo do IVC, Pedro Martins Silva, o resultado positivo era esperado, dado que a crise mundial havia quebrado a média nacional de vendas. Mas, fazia um alerta: levantava a hipótese de que a Copa do Mundo teria interferido negativamente nas vendas. Em junho, se registrava decréscimo considerável na circulação, com queda acentuada na venda avulsa. Foi o menor índice desde janeiro de 2008. Comportamento semelhante foi verificado em junho de 2006, o que abre a hipótese de que a Copa do Mundo tenha gerado este impacto. O volume de vendas por assinaturas não sofreu essa alteração no mesmo mês.
Outros dados divulgados pelo IVC, contudo, foram ainda mais reveladores: os líderes de vendas no meio do ano foram Super Notícia (MG) e Extra (RJ). A Folha aparecia em terceiro lugar em circulação, depois de liderar por décadas. O Globo figurava na quarta posição, seguido pelo O Estado de S.Paulo. O relatório do IVC (março de 2010) apresentava a seguinte tabela:
Jornal e exemplares vendidos
Super Notícia……………..303.269
Extra……………..302.697
Folha de S.Paulo……………..292.626
O Globo……………..251.525
Estado de S.Paulo……………..230.051
Zero Hora……………..185.026
Correio do Povo……………..160.157
Meia Hora……………..159.766
Diário Gaúcho……………..158.625
Aqui……………..137.612
Rio de Janeiro, na soma dos principais jornais, vendia mais que São Paulo (522 mil exemplares/dia), Minas Gerais (440 mil/dia) e Rio Grande do Sul (403 mil/dia), chegando a 713 mil jornais vendidos por dia, em média.
Que hipótese parece evidente? Que o leitor-síntese dos jornais mais influentes do país envelhece e perde sua hegemonia na formação de opinião. É tolerante no comportamento social, mas duro em relação à ameaça de agressão ou violência. E pouco ousado politicamente.
Por seu turno, a classe média consumidora, a nova classe C de que tanto se fala, é muito mais pragmática e conservadora. Como rompe com uma trajetória familiar de pobreza e de convivência diária com o risco, dialoga com o sensacionalismo, como se fosse uma notícia esperada e não necessariamente uma ameaça à sobrevivência. A violência está mais naturalizada em sua história de vida. Arriscaria dizer que é sua ‘coluna social’ diária, até pouco tempo. Pragmática, não percebe tanta diferença em relação às práticas partidárias. É curtida o suficiente para ser cínica neste campo.
A maioria da classe C acredita apenas em sua família (83% citam a família como segmento social mais importante) e, em segundo lugar, em seus amigos. E ponto. Os casos de corrupção não saltam aos olhos como ocorre com a classe média tradicional, que pauta os grandes jornais.
Leitura necessária
Nada mais distante que a linha editorial assumida pela grande imprensa brasileira. O que sustento é que ao perseguir ou manter o velho leitor, os chefes de editoria reproduzem o tradicional abraço de afogados. A zona de conforto editorial gera, por sua vez, acidez e desgosto, frustração e revolta, estampadas nos editoriais e artigos opinativos. Procuram acreditar que o problema é a forma. Diminuem os textos, procuram se aproximar de algo da linguagem rápida e direta dos blogs e do twitter. Chegam a institucionalizar blogs de seus articulistas.
Mas o problema continua. Porque não se trata de problema com a forma, mas com o conteúdo, com a linha editorial. Os jornais insistem em acreditar que a elite cultural permanece como formadora de opinião e, daí, extraem seu poder de influência. Mas o Brasil mudou. A hegemonia eleitoral e de mercado está nas mãos da classe C. Lula é popular porque é a expressão viva desta classe. Os editores torcem o nariz para cada fala coloquial ou analogia que o presidente mais popular da recente história política do país faz com o futebol. Não entendem que Lula dá a pista para se recuperarem como formadores de opinião. Que orienta como deve ser a retórica e como tocar nos corações e mentes dos compradores vorazes deste país que caminha celeremente para ser o quinto mercado consumidor do planeta.
Defensores do mercado, os grandes jornais se afastam da nova lógica de consumo e do novo consumidor do país. Refugiam-se no ultrapassado. Um paradoxo atrás do outro. Seguem a notícia e procuram os furos de reportagem, mas resistem a acompanhar as mudanças mercadológicas do país.
Nossos editores envelheceram. Evidenciam sinais de conservadorismo. Parecem não ter energia para se recriar, para ousar. Desejam ser elite, uma elite que dá lugar à uma nova classe. Deveriam ler O Leopardo, aquela obra de arte que, sem saber, é uma das leituras mais importantes da política. E, agora, um manual de sobrevivência da grande imprensa.
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Sociólogo