Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aborto ilegal na era da biotecnologia

Desde que foi aprovada a utilização de embriões humanos para pesquisa e terapia, no bojo da lei de ‘biossegurança’ (aquela que legalizou a soja transgênica da Monsanto), muita água tem corrido por baixo da ponte do sistema judicial/legislativo/poder médico/complexo farmaco-biotecnológico. Está em curso um processo que envolve a apropriação dos gametas humanos (óvulos e espermatozoides), configurações do parentesco e a ampliação da ancestral expropriação dos corpos femininos. O processo corre sem a discussão qualificada pela sociedade, mal informada pela mídia hegemônica, ventríloqua dos interesses da big pharma.

Aprovar o uso de células embrionárias humanas quando o aborto é ilegal requereu o recurso a rococós argumentativos cujo poder de lei e de polícia só são possíveis nessa sociedade estruturalmente misógina e injusta. Não conformados com a lei, representantes do Vaticano, através de iniciativa do ex-procurador geral da República Claudio Fonteles, cujas ligações com a igreja católica são conhecidas, levaram embriões e seus disputantes – os poderes tecno-científico-industriais e os religiosos – ao Supremo Tribunal Federal, arguindo a constitucionalidade de sua manipulação.

Em votos dos ministros desse tribunal foram separados os embriões que estão nos úteros das mulheres – e, portanto, pertencem ao Estado (com a forte intervenção indevida daquele Estado estrangeiro) – e não podem ser abortados dos embriões que são ‘fabricados’ nos laboratórios das clínicas de fertilização in vitro, ou, como são chamadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, os Bancos de Células e Tecidos Germinativos. Se a questão ética fosse mesmo os embriões, seria possível tal separação?

Indústria da fertilização envolve bilhões de dólares

Como sabemos, a proibição do aborto é a maneira do patriarcado expropriar os corpos das mulheres, negando-lhes autonomia enquanto indivíduos racionais, sujeitos de direito e cidadania plena. Essa ilegalidade é inspirada e sempre reclamada pelo direito canônico, em país constitucionalmente laico e supostamente soberano.

Ocorre que, com o advento da exteriorização da procriação, entrou nesse processo a indústria farmaco-biotecnológica, que tem interesses além da venda dos hormônios e serviços de ‘assistência’ à reprodução (estimulada pelo dispositivo de louvação à maternidade obrigatória), no patenteamento das células germinativas e dos mecanismos que as fazem se transformar em qualquer tecido. Outro uso de embriões do qual não vê notícia se faz na elaboração de vacinas (um gigantesco business na era das epidemias fabricadas e de vírus patenteados) e nos testes para novos medicamentos.

Na disputa pela propriedade dos embriões, estrategicamente, focou-se o debate entre ‘ciência’ e ‘igreja’, dois campos de poder eminentemente dominados pelo discurso patriarcal. Na mídia ventríloqua, defender a ciência é avançado, proibir as pesquisas é idade média. Mantidas as mulheres no mais inquisitorial silêncio e na mais macroscópica invisibilidade, ninguém, nesse debate enviesado, se referiu ao fato de que antes dos embriões vêm os óvulos. E antes dos óvulos, as mulheres. Garantidos os antolhos, poucas pessoas param para se perguntar como, afinal, surgem os óvulos. Mesmo os mais leigos intuem que óvulos não saem dos corpos por masturbação. São obtidos através de intervenção invasora (longe de ‘assistida’, essa reprodução) com hormônios e procedimentos cirúrgicos. E com muito sofrimento, graves efeitos ‘colaterais’, incluindo mortes já relatadas pela hiperestimulação hormonal.

Apesar disso, os procedimentos de fertilização in vitro (FIV) se multiplicam, são alardeadas falsas estatísticas de êxito (segundo o Ministério de Saúde da França, têm 85% de fracasso), mas gerando muito dinheiro. A indústria da FIV já envolve bilhões de dólares no mundo todo. Simples relatórios sobre lugares de melhor investimentos nesse campo são vendidos na net por 10, 15…mil dólares! Em boletim da veneranda Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, lê-se que o país que conseguir patentear os mecanismos que fazem uma célula embrionária se diferenciar nos diversos tecidos (ósseo, nervoso etc.) vai acrescentar ‘um campo petrolífero à sua economia’. Para isso, são necessários milhares de óvulos. A perfuração desse campo petrolífero se fará não nas águas profundas do pré-sal, mas nos corpos das mulheres.

Parentesco por decreto

Só para fazer uma linhagem de células BR-1 – primeira linhagem ‘brasileira’ –, a dra. Lygia da Veiga Pereira usou mais de 240 embriões. Quantos óvulos, ou antes, quantas mulheres foram usadas? Tudo se passa como se os embriões nascessem mesmo nas clínicas, ou melhor, nos bancos de Células e Tecidos Germinativos. Esses bancos deveriam informar a Anvisa quantos embriões estão disponíveis (segundo a terminologia oficial), quantos foram doados e quantos foram inutilizados.

Segundo relatórios da própria Anvisa, que denominou esse sistema de ‘vigilância sanitária’ de SIS-Embrio, ou Sistema Nacional de produção de Embriões, mais de 80% das clínicas não informam. E nem a Anvisa toma providências. Assim, toda mulher que começa um programa de fertilização, em todas as clínicas do país, particulares e públicas, entra no SIS-Embrio, passando a ser potencialmente fornecedora de óvulos para a indústria farmaco-biotec. Digo potencialmente, acreditando na ética dos colegas de Roger Abdelmassih que, condenado a 278 anos de prisão, continua solto.

Não consta que a Anvisa coloque um fiscal em cada clínica, mesmo porque seria impossível fiscalizar cada procedimento de coleta de óvulos, mas isso seria, em tese, desejável, uma vez que existe um intenso tráfico internacional de óvulos. Para ter uma ideia, basta perguntar ao Google. Em inglês, se quiser mais detalhes.

Legaliza-se a expropriação dos gametas, configurando o parentesco por decreto: ‘genitores’ passam a ser apenas os ‘usuários finais dos embriões’. Curiosamente, através de uma tecnologia que, a princípio, responde ao mais radical reducionismo biologicista de mater/paternidade – tudo não poderia passar pela adoção? –, a parentalidade é atribuída não aos ‘doadores’ do ‘material’ genético mas aos ‘usuários’finais, que não são, necessariamente, quem forneceu óvulos e/ou espermatozoides.

Os discursos e seus enunciadores

Finalmente, para acabar o artigo mas não o assunto, o que temos agora é uma ofensiva dos deputados das ‘bancadas’ religiosas do Congresso da República laica e soberana em tentativas de aprovar projetos que propõem anular as formas de aborto previstas em lei, instituir o estatuto do ‘nascituro’e controlar as gestantes. No PL, que obriga as unidades de saúde a registrarem as gestações com fins de verificar se serão eventualmente interrompidas, a justificativa inclui a vantagem de colaborar para o ‘planejamento de políticas de armazenamento de células-tronco, retiradas do cordão umbilical, a fim de avançar no estudo de biotecnologia e no desenvolvimento de pesquisas científicas’.

Ampliar a captação de células-tronco por toda a rede pública é argumento para incentivar o policiamento das gestantes, mesmo que as mulheres continuem peregrinando de hospital em hospital para conseguirem parir, entre insultos, gritos e a vergonhosa desatenção sacramentada pelo racismo e pela misoginia institucionais – sobretudo no caso dos partos normais.

Nascituros, como se viu, são os embriões sempre prontos para nascer desde seus primeiros instantes, no ventre nada livre das mulheres. Embriões disponíveis são aqueles depositados em bancos. Se alguém ainda duvidava de Foucault, esse é um exemplo elucidativo de como os discursos fazem realidades e seus enunciadores, os regimes de verdade.

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Médica, Salvador, BA