Algumas palavras só aparecem nas festas de fim de ano. ‘Próspero’ é o adjetivo mais usado para qualificar o ano que se deseja para o próximo no próximo ano. ‘Feliz’ é disparado o adjetivo preferido para o Natal. Às vezes, saem também ‘rico’, ‘venturoso’, ‘santo’ e poucos mais. Os hegemônicos são ‘feliz’ para ‘Natal’ e ‘próspero ‘para o ano vindouro. Aliás, vindouro é variante de próximo.
Ah, as palavras! O menino estava a ponto de ser atropelado por uma bicicleta. Um padre anteviu o desastre e gritou: ‘Cuidado!’ O ciclista assustou-se e caiu por terra. O padre, sem parar de caminhar, disse ao menino: ‘Já viste o que é o poder da palavra?’
O guri tinha doze anos e se chamava Gabriel García Márquez. Dali a 42 anos ganharia o Prêmio Nobel de Literatura. Muitos anos depois de ter recebido o galardão mundial, confessaria num discurso que naquele remoto dia de sua adolescência soubera o poder das palavras e lembrou que os antigos maias adoravam um deus das palavras, tal a reverência pelo verbo.
‘Nunca como hoje foi tão grande esse poder’, acrescentou na conferência que pronunciou em Zacatecas, no México, em 7 de abril de 1997. E profetizou que a humanidade entraria no terceiro milênio sob o poder das palavras. (Gabriel García Márquez lançou em 2010 No vengo a decir un discurso, pela Random House Mondadori, em castelhano para Espanha e América Latina pela Sudamaericana, 151 páginas; é o mais recente livro do Prêmio Nobel – ver aqui.)
Exemplos de palavras sem imagens
Invertendo o provérbio ‘uma fotografia vale por mil palavras’, é uma palavra vale por mil fotografias. Fotografias e imagens, longe de fazer com que as palavras percam a força ou se façam desnecessárias, estão reforçando o verbo.
Há vários modos de comprovar a tese de que as palavras reinam absolutas hoje no mundo, acompanhadas ou não de imagens. Basta lembrar que, se é certo que algumas imagens, mas não todas, dispensam legenda, as palavras podem dizer tudo sem imagens, como disse Pero Vaz de Caminha, como disse Cristóvão Colombo, como disseram tantos viajantes, letrados ou padres dos primeiros séculos do Brasil e da América.
Podemos dar exemplos mais recentes e de mais fácil comprovação. O motorista engarrafado fala ao celular. A jovem, correndo e suando à beira da praia ou na rua, está ouvindo suas canções preferidas nos fones de ouvido. Sequer presta atenção à paisagem ou a você. Ou a ela mesma. Televisores, nas residências ou em locais públicos, proclamam em alto volume o que as imagens estão mostrando. Os políticos explicam o quarto segredo de Fátima em todos os canais. Os rádios, em casa, nos automóveis ou em locais públicos, preveem o tempo, o horóscopo e nos enchem de notícias, muitas das quais absolutamente desnecessárias, mas que não puderam dispensar as palavras para chegar a todos os ouvidos, alguns dos quais sem o poder de evitá-las. Diferentemente dos silenciosos animais do presépio, esses berram, mugem e zurram sem parar.
Até Deus precisou das criaturas
O Natal é, por excelência, o dia da palavra. Dentre aqueles que o narraram, destaca-se João: ‘No princípio já existia a Palavra. Tudo existiu por meio dela e sem ela não existia nada do que hoje existe’.
Foi assim desde o começo. ‘Exista a luz’, disse o Criador. ‘E a luz foi feita.’ É verdade que na tradução do hebraico para o latim, São Jerônimo, na célebre Vulgata, traduziu o verbo ‘existir’por facere (fazer), e não esse (ser, existir). Tornou-se clássico o versículo Fiat lux (faça-se a luz). Et facta est lux ( e a luz foi feita). Inclusive, este fiat lux tornou-se marca de fósforos no Brasil. Também as iniciais da Fábrica Italiana de Automóveis de Turim resultaram num outro Fiat.
Tudo o que existe, existiu primeiro na imaginação de algumas pessoas, depois em palavras com que designaram as realidades que criaram. Até as pinturas têm nomes. Se não soubessem a arte da palavra, nada teria sido criado, pois o criador precisa do outro. Até Deus precisou das criaturas, ao menos para admirá-lo, para ir até onde possam e, enfim, deter-se diante dos mistérios, dos quais o Natal é um dos maiores.
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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)