Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falência da imprensa brasileira?

Tem coisas na vida que só valem uma primeira vez. A segunda, quando aparece, geralmente é frustrante. Algo como aquela velha e conhecida frase, ‘a história quando se repete é como farsa’. Pois é, foi assim que me senti na Praça da Sé, na Catedral de São Paulo, no dia 23 de outubro, um domingo chuvoso e feio, no ato multirreligioso em homenagem aos 30 anos do assassinato de Vladimir Herzog por agentes da ditadura de 64, e pela paz. A primeira vez que entrei na Catedral foi no dia 31 de outubro de 1975, no ato ecumênico organizada pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Naquele dia, milhares de pessoas compareceram – com a presença de Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright – em solidariedade à família de Herzog e em protesto contra mais uma arbitrariedade da ditadura de então. Apesar do medo estampado nos rostos, havia também muita raiva e indignação entre os participantes deste ato.

Vladimir Herzog havia sido preso, torturado e morto naquele 25 de outubro, no DOI-Codi paulistano, na Rua Tomás Carvalhal, altura do número 1.000, quase esquina com a Rua Tutóia, Vila Mariana. Vlado acabou virando um símbolo da resistência contra os militares que governavam o país. Foi um dia inesquecível para mim. Além do trágico acontecimento, é a data do meu aniversário. Tinha 26 anos e estava recém-formado em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo. Acabei o Jornalismo em 1981, também pela PUC.

A cidade de São Paulo, naquela sexta-feira, 31 de outubro, estava elétrica, indócil, inquieta, cheia de fofocas e ameaças. Falava-se do ato público na Catedral meio que na surdina, no boca-a-boca, sobre uma possível invasão policial da praça para impedir e prender todos que estivessem no local. Mesmo assim, com a cidade praticamente ocupada pela polícia, muita gente foi ao ato religioso-político, 8 mil pessoas, segundo várias fontes.

O povo não é bobo

Era um momento de esperanças, apesar de tudo. Basicamente, dois setores da sociedade resistiam à ditadura militar: a imprensa e o meio artístico. A guerrilha fora dominada e apesar das promessas de uma volta lenta e gradual à democracia, prometida pelo ditador Geisel, a repressão corria solta. Naquele momento, para muitos, era a luta da imprensa contra a censura que simbolizava a resistência da sociedade civil. Foi essa credibilidade e confiança que garantiu a realização do ato ecumênico e a presença de milhares de brasileiros atendendo ao chamado do Sindicato dos Jornalistas. Isso é um fato, é história.

A imprensa procurava ir fundo nas pautas de então. Havia grandes reportagens apesar da censura. Qualquer brecha, publicava-se e depois agüentava-se o rojão que vinha forte da ditadura. Mesmo não sendo jornalista, como eu, tinha-se o maior respeito pelos veículos de imprensa. Foi uma época de muito risco, de muita criatividade, em que grandes jornalistas apareceram e se formaram, literalmente, na luta. Não fosse a atitude que o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo tomou, sabe-se lá quem mais poderia morrer nas celas do DOI-Codi, na cidade paulistana ou em qualquer similar no país.

E, mesmo assim, no dia 17 de janeiro de 1976 o líder operário Manuel Fiel Filho foi assassinado, também no DOI-Codi paulistano, do mesmo modo que Vlado. Apesar de tudo, a sociedade e a imprensa saíram mais fortes. A credibilidade dos veículos era muito grande, exceção feita à Rede Globo, vista como aliada da ditadura. Foi o veículo de imprensa que menos divulgou o ato e os seus acontecimentos, apesar dos esforços de alguns jornalistas da empresa. ‘O povo não é bobo, abaixo a Rede globo’ virou um grito popular em todas as manifestações da época.

Reedição do passado

No fim do missa, Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, pediu a todos paz, pedido este que para alguns, como eu, parecia uma capitulação frente ao regime, frente aos torturadores. Mesmo com medo, havia muita raiva e um certo desejo de vingança pelo que havia acontecido. Como não se sabia dos conflitos nos bastidores do poder, entre o grupo de Geisel, Golbery e outros, e do general Ednardo, comandante do II Exército em São Paulo, um dos líderes da linha-dura, o pedido de paz soou um pouco esquisito, quase uma rendição aos militares.

Mas não houve invasão policial nenhuma, todos os presentes assistiram ao ato em silêncio respeitoso e foram para casa sem maiores problemas, a não ser um grande congestionamento, fruto das barreiras policiais que haviam sido levantadas na cidade para impedir que as pessoas chegassem à Praça da Sé. A sociedade civil, liderada pelos jornalistas em luto, conseguira uma vitória contra a repressão. Esse episódio marcou para sempre um momento especial para a imprensa brasileira.

Trinta anos depois, num ato alcunhado de multirreligioso, com a presença de Dom Paulo Evaristo Arns, do rabino Henry Sobel – o reverendo James Wright e o arcebispo Dom Hélder Câmara já morreram –, de 17 representantes de várias religiões, com um coral de adolescentes do Fórum Mundial, mais o governador de São Paulo, o prefeito da cidade e algumas autoridades, a Catedral da Sé acolheu, talvez, um milhar de pessoas para reeditar aquele ato corajoso e meritório do passado.

Vlado não gostaria

Tal qual a imprensa brasileira de hoje em dia, o ato teve caráter grandioso, apelativo, superficial, sensacionalista, espetacular no sentido de um espetáculo, quase um palanque político, apesar de alguns momentos profundamente emocionantes. Se na primeira missa, em 1975, milhares de pessoas, independentemente de serem jornalistas, vieram apesar do medo e da repressão, na de domingo, dia 23, poucos apareceram e sabe-se lá quantos não jornalistas. Quem diria…

A imprensa de hoje, de maneira geral, não comove mais, não estimula mais a crítica, os questionamentos, não aprofunda mais que um release e não tem mais o trabalho de investigar denúncias disto-ou-daquilo. Basta alguém falar algo que é divulgado no ato como verdade. Cabe ao leitor, ouvinte ou telespectador aceitar ou não. A imprensa de hoje não mais se responsabiliza por nada do que faz ou divulga. Ela não informa, ela faz campanha, manipulando os fatos de tal jeito que a presença ou não de censores nas redações é totalmente desnecessária.

Qualquer semelhança da mídia brasileira com a de 1975 é meramente ficcional. Na aparência, no discurso altivo, no marketing agressivo, a mídia do país até parece ser independente, ética e responsável socialmente. No dia-a-dia, é igual ao ato pela paz e pelos 30 anos do assassinato de Herzog. Uma foto retocada, monocromática, quase uma farsa. Não conheci o Vlado. Pelo que li, ouvi e vi, acho que ele não gostaria nem um pouco disso que a imprensa brasileira se tornou. Uma pena…

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Jornalista