Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A rádio que toca o Brasil

No dia 23 de setembro de 1992, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela transparência. Determinou que o impeachment do então presidente da Repú­blica, Fernando Collor de Mello, deveria ser decidido na Câmara dos Deputa­dos em regime de votação aberta. Foi uma decisão de grande impacto político. A partir dela, os parlamentares indecisos não mais puderam dissimular: teriam que declarar o seu voto em voz alta, diante dos pares, diante dos microfones e das câmeras de TV. Naturalmente, aquela foi também uma decisão de for­te repercussão na imprensa. Meses depois, em 17 de dezembro do mesmo ano, seus ministros voltariam a se pronunciar sobre o tema, abrindo caminho para que o destino de Collor fosse selado no Senado Federal. Como de fato foi. Collor, que já estava afastado (Itamar Franco respondia pela Presidência), perdeu oficialmente o posto no dia 29 de dezembro, para felicidade geral da nação.

Dá gosto lembrar. O ano de 1992 foi marcante. Um ano incomum. A so­ciedade se levantou contra a corrupção. Passeatas ganharam as ruas. Um pre­sidente despencou. Em 1992, a vontade popular encontrou ecos no Poder Legislativo e até no Poder Judiciário. Naqueles meses, o significado de Justiça foi o mesmo para o povo e para os ministros do Supremo. Era um cenário contagiante, tão carregado de civismo e de conquistas que nem parecia ser verdade.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal, antes confinados a gabinetes, ingressaram na cena pública, na arena aberta. Até aquele ano, não era costume que o STF entrasse em rede. Em 1992 foi diferente. Em parte porque, naquele ano, quando o STF estava sintonizado com as passeatas, a CBN completava seu primeiro aniversário. E resolveu pôr no ar os ministros do STF proferindo seus votos.

Eu não sei dizer, hoje, com segurança, se ela foi a única emissora a veicular os votos do Supremo. Sei dizer que foi por ela que eu, ao menos eu, escutei, enquanto dirigia meu carro. Aquela transmissão tinha algo de interminável, com os colendos pronunciamentos arrastados, pesados, opacos, e tinha algo de no­tável. Eu descia a Rubem Berta, em São Paulo, impressionado com a ousadia radiofônica. Ao mesmo tempo, eu experimentava uma aflição intrigante. Peguei depois a Bandeirantes, à direita, sem me desligar da notícia, e fui seguindo na direção do meu trabalho, na Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, onde fi­cavam as redações das revistas mensais da Editora Abril. O que me intrigava era bastante simples: eu não conseguia entender nada. Os magistrados falavam um idioma inacessível, quase um latim de novela. Liam arrazoados longuíssimos, travados como o trânsito que me atrasava, mas o significado era inacessível a um ouvinte comum, como eu. Aquele juridiquês gongórico, ou barroco, ou quem sabe apenas enrolado, definitivamente não primava pela clareza. Mesmo assim, minha admiração pela CBN compensava minha aflição – e compensava o engarrafamento. Naquele dia, eu não entendi nada – mas achei ótimo.

Ainda bem que, depois, os âncoras me ajudaram a decifrar o estilo avesso da Corte. O jornalismo, no rádio ou na revista, é um pouco o ofício de traduzir o que o poder quer dizer, mesmo quando o poder não diz exatamente o que quer dizer.

E assim foi. Naquele dia eu entendi um pouco mais do Supremo. Naquele ano o Collor caiu, o Brasil ficou um pouco melhor e a fórmula da CBN co­meçou a fazer escola. Foi seguida por outras – que fizeram muito bem em tomar-lhe trilha.

O espaço público sonoro

A emissora que estreou tocando notícia, só notícia, sem prejuízo de suas vinhetas inconfundíveis, transformou o núcleo do que aprendemos a chamar de espaço público brasileiro. Ou, se fica melhor assim, reequilibrou o espaço público, reabilitou a palavra falada no reino da imagem ao vivo.

Esse verbo, reabilitar, não está aqui por acaso, como já veremos. Nos me­ados do século XX, quando o espaço público nacional assumiu os parâme­tros da comunicação de massa, quem mandava era precisamente a palavra falada. Entre as décadas de 1940 e 1960, o imaginário pátrio era um espaço radiofônico: um fato só ganhava o estatuto de verdadeiro quando alcançava sua representação nas ondas do rádio. Estávamos na idade de ouro da Rádio Nacional, das radionovelas, de A Voz do Brasil (obrigatória mas, ao menos na­queles tempos, funcional) e do Repórter Esso. Depois, a TV roubou a cena. Dos anos 1970 em diante, o Brasil virou sinônimo de televisão. Em particular, virou sinônimo de Rede Globo. Se, para os juristas do STF, quod non est in acti non est in mundo (o que não está nos autos não está no mundo), para os brasileiros de todos os rincões e de todos os quadrantes, o que não estava na TV não tinha tido lugar no mundo.

Em função desse padrão tecnológico, decorrente da poderosa centralida­de que a instância da imagem ao vivo assumiu na comunicação social, a televi­são se converteu na arena mais luminosa da nacionalidade. Ultrapassado pelo progresso, o rádio amargou o papel de coadjuvante. A não ser por exceções meritórias (em Porto Alegre, por exemplo, o jornalismo radiofônico quase nunca perdeu o tônus), o rádio brasileiro chegou aos anos 1990 como retardatário: vital, sem a menor dúvida, para o noticiário das cidades, imprescindí­vel para o jornalismo policial (ou policialesco), bom para vender remédios de manhãzinha, mas periférico ou mesmo irrelevante quando o assunto era uma encruzilhada nacional de grande envergadura, como saber se um presidente da República ficava na cadeira ou ia embora para casa. De helicóptero.

A CBN ajudou a mudar esse estado de coisas. Ela não revogou a prevalên­cia da imagem, mas mudou o quadro. Graças ao impulso que ela representou, o nosso espaço público adquiriu mais vivacidade e mais profundidade. Não que nisso o Brasil tenha sido especialmente original. Não foi. Sempre existiram boas redes de rádios jornalísticas fora do Brasil, mesmo durante o período mais exuberante da televisão aberta. As redes da CBS ou da ABC, nos Estados Unidos, podem ser vistas como tal. Hoje, também nos Estados Unidos, e de modo ainda mais destacado, poderíamos apontar as cerca de 900 emissoras pertencentes ao sistema da NPR (National Public Radio), cujos programas al­cançam mais de 30 milhões de ouvintes. A NPR é uma prova gigantesca de que a informação independente sobre assuntos de relevância nacional e interna­cional gera credibilidade e boa audiência, também no rádio. O mérito da CBN foi pôr de pé, no Brasil, a rede continental de jornalismo radiofônico com as originalidades que o desafio exigia. Ela investiu todas as fichas nos assuntos de relevância nacional, que interessavam diretamente aos cidadãos de qualquer cidade do país, disputando com televisão, revistas e jornais diários a primazia da notícia de interesse público de primeira ordem. Sem nenhum demérito das outras grandes emissoras e redes de rádio no Brasil, coube à CBN o ar­rojo bem-sucedido de instaurar no rádio essa receita de jornalismo puro, sem concessões ao entretenimento, com repórteres dedicados às pautas que são cruciais para o país. Desse modo, passou a concorrer em pé de igualdade com todos os outros veículos.

Sem risco de exagero, é possível afirmar que, naquele ano de 1992, o espaço público brasileiro, mais que profundidade, ganhava complexidade. Di­versidade. De lá para cá, ele ficou melhor. Menos simplório. Menos chapado. Além da instância da imagem ao vivo, ele se abriu para a palavra falada, a palavra sem imagem. Por isso é que podemos, aqui, lançar mão do verbo reabilitar: a partir da inflexão iniciada pela CBN, o núcleo mais atuante da opinião pública nacional passou, outra vez, a se informar – e a se reconhecer – pela conversa radiofônica. A CBN encarou o desafio de ser uma rádio do país e para o país. Distanciou-se da regra geral que tinha prevalecido até ali, a regra de que o rádio servia para ser o veículo local, dessa ou daquela cidade, com um pouco de comentarismo sobre assuntos nacionais. A CBN abriu mão do sensacionalismo sanguinário e rentável, assim como dispensou as fórmulas batidas dos gêneros chamados – talvez preconceituosamente, mas isso é outra história – de “populares”. Ela topou a briga de falar com os tais formadores de opinião. E tudo isso pelo rádio. Foi assim que ela contribuiu para reconfigurar a textura do espaço público em nosso país e reabilitou a palavra falada.

A partir daí, a notícia de alcance nacional deixou de ser monopólio dos jornais diários, das revistas semanais (que, no Brasil, são noticiosas, além de interpretativas e opinativas), ou dos maiores noticiários de TV. O rádio entrou na corrida, aposentando de vez os esqueminhas teóricos segundo os quais os diários vêm antes, dando os furos, e os meios de massa vêm depois, fazendo a difusão da agenda posta pelos jornais. Hoje, com a disseminação das tecno­logias trazidas pela era digital, esses esquemas têm menos sentido ainda. O rádio pode muito bem pautar os jornais diários. A TV pode muito bem fazer a interpretação das notícias. O rádio promove debates, esclarece tendências. A internet recombina tudo.

Não por acaso, a CBN parece não se intimidar com o advento das redes sociais. Sabe promover uma articulação avançada entre as redes sociais, a internet e as ondas eletromagnéticas. Em matéria de combinação e recombinação das potencialidades dos meios que as novas tecnologias fazem confluir, a CBN segue na dianteira.

Os ensinamentos contidos num manual

Aqui, enfim, chegamos ao valor deste manual. Esse valor não se restringe ao uso interno que ele terá. Ele será indispensável para todos os profissionais envolvidos direta ou indiretamente nas operações da CBN, é certo, mas car­rega também uma série de ensinamentos para o leitor leigo, interessado em jornalismo e em comunicação de forma geral. Esses ensinamentos, que são muitos, podem ser enumerados segundo vários critérios.

O primeiro deles talvez seja esse de que falamos há dois parágrafos: o modo inovador com que essa emissora jornalística lida com o desafio de inte­grar rádio e internet. A rede mundial de computadores não veio para derrubar o rádio, assim como não veio para sepultar a televisão ou o jornal. Em lugar disso, potencializa os alcances desses meios. É fato. Quanto a isso, seria perti­nente sublinhar que a internet não é propriamente um meio de comunicação, embora muitos a vejam como tal. Ela é, antes, uma nova esfera para a viabi­lização das relações humanas, quaisquer que sejam as formas e as vertentes dessas relações. A nova esfera (virtual ou digital) recobre as outras (físicas ou analógicas), franqueando uma ampliação de relações de consumo, relações de fiscalização política, relações de cobranças e pagamentos tributários, relações afetivas – e até mesmo as relações típicas da comunicação social. A internet não liquida, mas incorpora as formas convencionais de comunicação. Ela talvez apresse a aposentadoria do papel, é verdade, mas não acabará, como não aca­bou, com o texto escrito. Ela inclui a TV, cujo negócio, é bom lembrar, vem se ampliando em faturamento e em abrangência no mundo inteiro. Do mesmo modo, ela carrega o rádio.

O dado novo, portanto, é apenas um: fazer rádio, hoje, é fazê-lo também no site e nas redes sociais, com imagem e texto, além do som – e cada vez mais em diálogo com o público. Nessa matéria, a CBN já é sucesso. Também sobre isso, o presente manual é uma referência. Para o presente e para o futuro.

Outra parte dos segredos do êxito da CBN vem do passado, vem da me­lhor tradição da imprensa livre. A ética jornalística dá bem essa medida: com a sabedoria que herda da experiência, o jornalismo se capacita a desbravar o que há de desconhecido nos novos tempos. Este manual fala, em mais de uma passagem, no valor da independência jornalística, um cânone que data de quase dois séculos. A independência, segundo ensina este manual, deve ser observada em todos os campos do jornalismo, inclusive na cobertura de esportes, como o futebol, em que as fronteiras entre imprensa e a indústria da diversão vão se diluindo sem muita cerimônia. A CBN não investe na diluição. Cobra pos­tura crítica do jornalista. Prestigia o interesse público. Do mesmo modo, para reforçar o mesmo valor da independência, condena a prática de jornalistas que fazem campanhas publicitárias ou campanhas partidárias, pois entende que isso concorre para a corrosão da credibilidade. Assim, este manual também vem do passado. Preserva e torna mais viva a genealogia da reportagem independente, a única passível de confiança pública.

Por fim, há lições aqui sobre planejamento editorial. Sem pensamento não se estrutura uma estratégia de jornalismo. Pensamento, sejamos claros, não sig­nifica apenas um amontoado de metas mercadológicas. Mais que isso, significa a articulação orgânica de ideias vivas, em processo, ideias que geram novas ideias, e que redundam em objetivos claros, tão claros e compartilhados que façam sentido para toda a equipe da redação. Um plano editorial, portanto, brota de um pensamento traduzido em roteiro de ação, com formas racionais para avaliar e mensurar os avanços ou os fracassos, capazes de fornecer bases para as necessárias correções de curso.

Este manual contém o legado, a história e os valores da CBN. Aqui estão, também, os padrões de desempenho que ela pretende seguir, em atendimen­to às necessidades e aos direitos de sua audiência. Não só isso. Ao afirmar esses valores, e ao fixar procedimentos obrigatórios, tanto formais como de comportamento, este documento não deixa de ser um contrato com todos os ouvintes. Aqui está aquilo que a CBN se compromete a oferecer, com um bom nível de detalhes. Se ela faltar com seus compromissos, o ouvinte poderá reclamar. Não é pouca coisa.

Para quem gosta de ouvir a rádio que toca notícia, a leitura deste manual vai agradar aos ouvidos, além dos olhos. O jornalismo que parte do cultivo da in­dependência, com base em uma postura apartidária, traz bons resultados, tanto para a sociedade quanto para seus jornalistas. O jornalismo é uma relação de confiança, num jogo complexo de intersubjetividades, que pode ser sintetizado em quatro polos. O primeiro é o do mediador (a redação independente), que recolhe as notícias para torná-las públicas. O segundo polo é o da fonte, que fornece dados e opiniões aos jornalistas. O terceiro é aquele de quem se fala: o jornalista sempre está relatando as ações de terceiros, de pessoas cuja conduta é notícia. Finalmente, o quarto polo é a audiência. É ela que tem o direito de receber as notícias exclusivas em primeira mão, pois a democracia depende do atendimento desse direito.

Com tecnologias – velhas ou novas, não importa –, a imprensa vive às voltas com esse jogo baseado na confiança intersubjetiva. É por isso que se diz, com acerto, que sem ética não poderia haver jornalismo: a ética existe para fazer fluir a confiança entre os cidadãos. É por isso, também, que este manual nos chega em hora oportuna. A cada dia mais, nossa sociedade e nosso espaço público, mais e mais complexos, dependem da imprensa que não dependa do poder. Dependemos da imprensa que seja capaz de promover as pontes de diálogo. A imprensa tende, necessariamente, ao entendimento, assim como a guerra, necessariamente, tende à anulação do outro.

Mas, atenção, o pensamento que está contido neste manual não se esgota em planos, em normas, em tipificações e deontologias. Ele não se esgota em roteiros práticos. Vai além do que é formatável. Por isso, é correto dizer, tam­bém, que este manual é o retrato de uma idade do pensamento editorial da CBN. Não podemos tomar este livro como obra acabada. O que está aqui é um processo. Um bom manual de jornalismo nasce pronto para ser reformado amanhã, e depois de amanhã, e assim sucessivamente. Como o diálogo social, um manual como este não tem ponto de chegada. Ele vai evoluir, assim como resulta de uma evolução.

No mais, a CBN seguirá tocando notícias – e tocando suas vinhetas. Assim, seguirá tocando a alma do Brasil. Um país que gosta tanto de conversar não poderia ficar sem isso. Aqui está o modo de fazer. Mas o tempero, a ginga, a inspiração, isso aí, meu caro ouvinte, isso aí você só encontra quando liga. Aí, então, você sabe onde está. Sabe de ouvido.

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[Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM]

 

Um guia e um compromisso

Mariza Tavares

O jornalismo é tão árduo quanto fascinante, e o seu exercício traz, em doses quase equivalentes, objetividade e subjetividade. Se há uma história a ser contada, cabe ao jornalista ouvir versões diferentes, colher depoimentos con­flitantes, analisar dados e relatar fatos. Com avanços e recuos, tenta encaixar as peças do quebra-cabeça. Sua missão é a busca do conhecimento.

Um manual é, por definição, um guia para orientar a execução de tarefas. Dito assim, parece simples, mas não é fácil formular um conjunto de regras que contemple as atividades, as dúvidas e os conflitos que envolvem o trabalho e o comportamento dos jornalistas. Um manual de redação é a tentativa de sistematizar as orientações dadas à equipe no dia a dia das coberturas; de criar padrões para a produção e a apresentação dos conteúdos editoriais a partir das discussões que pontuam o cotidiano de repórteres, produtores, âncoras e editores.

Este é o primeiro manual de redação da CBN. Seu principal objetivo é esta­belecer regras que norteiem a ação dos profissionais; no entanto, pretendemos ir além: é nosso desejo compartilhar com estudantes, estudiosos, ouvintes e internautas a forma como o trabalho é realizado numa rádio que, hoje em dia, é cada vez mais uma plataforma multimídia de informação.

É por isso que este livro trata não só da linguagem e do texto radiofônico, mas também de internet e mídias sociais; vai do futebol à realização de séries com fotos e vídeos. E discute as questões éticas que envolvem a conduta dos jornalistas e a maneira apropriada de abordar temas sensíveis. O jornalismo da CBN não é imune ao erro, mas busca incessantemente isenção, acurácia, apar­tidarismo e pluralidade. E repudia o sensacionalismo, a irresponsabilidade e a manipulação dos fatos. Este manual é um compromisso. Contamos com todos para não nos afastarmos nunca desta trilha. [Mariza Tavares é diretora-executiva da CBN]