O Brasil é o país do futebol, da caipirinha, do carnaval, da corrupção… e da crônica. Somos ou não somos o único país do mundo a ter um príncipe nesta área? Escolhido hors concours por seus pares mais exigentes, o capixaba-com-alma-carioca Rubem Braga assim foi aclamado: príncipe. Mas se o nosso príncipe e sabiá da crônica deixou uma legião de fãs, não legou à posteridade, contudo, um discípulo com a mesma força lírica. Rubem era único.
Ainda bem, pois novos caminhos tiveram que ser abertos a ferro e fogo por cronistas que apostaram em novos estilos, novas dicções, novas propostas.
E não seria esta uma tarefa das mais amenas, levando-se em conta que os primeiros cultores do gênero tipicamente verde e amarelo, aqueles que contribuíram para dar-lhe um contorno genuinamente nacional, formavam uma espécie de ‘time dos sonhos’ da crônica. Vejamos: além do próprio Braga, vêm de priscas eras João do Rio e Lima Barreto, e, no século 20, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. A crônica nunca perdeu a verve e o viço entre nós. Seguiu-se àquele elenco uma nova legião de jovens cronistas tão aguerridos quanto inovadores.
Um desses nomes é José Carlos Oliveira, de quem a Civilização Brasileira acaba de lançar Flanando em Paris e O homem na varanda do Antonio’s. Em sua definição clássica, a crônica é apontada como um híbrido entre o jornalismo e a literatura. Carlinhos Oliveira, como era conhecido no círculo boêmio e literário carioca, distende ao máximo esses dois limites.
Vivendo no Rio de Janeiro dos anos 60 e 70, Carlinhos Oliveira foi um polemista. ‘Na linguagem, introduziu uma sofisticação literária inigualável, misturada com gírias e expressões populares; no conteúdo, injetou uma densidade psicológico-existencial, com muita ironia, indignação, lirismo e deboche. Seus fragmentos soluçantes, às vezes desesperados, não poupavam nada. Muito menos a si próprio’, escreveu o jornalista Jason Tércio, organizador dos dois livros.
Perdido na multidão
Todas as crônicas de Flanando em Paris foram originalmente publicadas no Jornal do Brasil. Nelas Carlinhos Oliveira descreve em fragmentos nem sempre soluçantes suas duas passagens pela capital francesa, revelando o seu múltiplo de escritor, poeta, filósofo, crítico e xereta categorizado do cotidiano parisiense. Em uma palavra, como o título indica: um flaneur.
Onde mais se poderia flanar, explorar ao máximo pernadas lírico-existenciais senão em Paris? Por suas ruas perambulou Baudelaire, flaneur de carteirinha, observando e anotando a explosão da modernidade nos bulevares, nas praças de Paris.
Pois Carlinhos Oliveira, boêmio incurável e riponga, traçou e foi traçado por Paris, realizando um sonho da infância. Fez amizades ao léu, foi a festas, freqüentou inúmeros cafés – como antes haviam feito Sartre & Beauvoir, Hemingway, Scott Fitzgerald, Lênin e todos aqueles que foram tomados de amor por Paris.
‘Quanto a mim, depois de muito andar, aqui estou na cidade com que sonhava desde menino. Tenho apreciado esses monumentos, esses pássaros que adejam o Sena, em cujas margens os barcos grisalhos estão ancorados! Gosto de andar debaixo deste céu inóspito, perdido na multidão formada por todas as nacionalidades’, escreveu.
O bálsamo esperado
Aliás, em Paris, entre tantos encontros casuais, Carlinhos encontra Samuel Beckett: ‘Eu já havia bebido bastante no La Coupole e me sentei no Rose Bud, pensando em passar da cerveja para um penúltimo uísque, antes de me deitar. Mas, quando prestei atenção, estava batendo papo com Samuel Beckett e um outro irlandês chamado Lowenthal, ou coisa que o valha. Batendo papo é força de expressão, porque Beckett não disse uma palavra durante toda a madrugada. Ele apenas sorria na minha direção, com seus olhos azuis muito doces num rosto lavrado de rugas. É um homem alto, ossudo e quieto. Eu lhe falava sobre sua maior admiradora brasileira, que é Vera Pedrosa Martins, e ele se mostrava surpreendido ao saber que tinha leitores no Brasil’.
Mas ao passo em que se deslumbra com a realização de um sonho, o cronista não se olvida de suas raízes, e trava um diálogo certamente reconhecido por todos os exilados ou auto-exilados de sua condição pátria. No fundo, como bom brazuca que era, anotou: ‘É inútil fingir: a palavra saudade está atrás de cada gemido que não ouso articular. O céu da minha terra, e um sorriso, eis o que me falta. A paisagem familiar, e o sorriso de um ser amado’.
Essa quase canção do exílio, no entanto, não tolhe o espírito livre de monsieur Oliveirrá. Ele desfruta cada instante em Paris, cada minuto, num itinerário quase proustiano em que a teia de sua própria memória alimenta suas andanças presentes, suas reflexões, seus lamentos.
Carlinhos Oliveira deixou o Brasil para sua segunda viagem a Paris – a primeira acontecera em 1963 – num momento de barra pesada por aqui. Vivia-se sob os coturnos do AI-5. Censura total, violência e tortura. A viagem à França foi também um exílio auto-imposto, por causa das desgraças da política, da mesquinhez da vida cotidiana dominada pelos militares. Num arroubo que em muito faz lembrar esses tempos de caixa 2 e mensalões, desabafou: ‘Não quero mais falar, nunca mais quero falar de política brasileira. Os personagens que nela se movimentam são toscos, mesquinhos, incapazes de discernir o futuro da pátria acima de suas pequenas cobiças, seus nojentos rancores, sua vaidade de travesti em baile de carnaval. Trabalhando esse material vil, sujei minhas mãos e meu espírito. Tratarei agora de tomar um banho de arte imortal, e de idéias olímpicas’.
Et voilà. Paris foi o bálsamo esperado para Carlinhos Oliveira, um enfant-terrible da crônica.
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias