Enquanto os dirigentes sindicais festejam mais um lance jurídico, agora determinando a volta da obrigatoriedade do diploma, os cursos de Jornalismo continuam funcionando sem controles, sem avaliação, sem critérios.
No domingo (6/11), alguns estudantes universitários brasileiros fizeram o exame que veio substituir o antigo Provão, agora chamado de Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes). Aqui ou ali, alguns entreveros ligeiros. Nos tempos do Provão, os estudantes organizavam manifestações e boicotes que conseguiam desviar o foco da mídia. O boicote, que consistia apenas em entregar as provas em branco, era liderado por uma elite de estudantes na maioria oriundos de escolas que se bastavam – um eventual conceito ruim não os abalaria.
Dentre as mudanças ornamentais no sistema de avaliação que o novo governo implementou com sucessivas idas e vindas – foram três ministros e inúmeros dirigentes nos órgãos responsáveis pela avaliação –, uma impunha uma amostra de estudantes (não mais a totalidade dos formandos como no Provão, agora com a denominação Enade) e a outra foi uma mudança geral nos cursos a serem avaliados. Claro: os cursos de Jornalismo, que estavam à frente dos boicotes e das manifestações, ficaram de fora.
Nunca se discutiu tanto qualidade de ensino e avaliação quanto nos quatro anos em que os cursos de jornalismo eram submetidos ao Provão.
Tal circunstância teve o seu momento mais intenso no período de 1998 a 2002. Em 1999, durante os meses de outubro e novembro, numa iniciativa pioneira – e única até agora na história – todos os cursos que ofereciam a habilitação em Jornalismo foram visitados por uma dupla de professores treinados e capacitados para fazer a avaliação.
Nos meses finais do governo Fernando Henrique, com o MEC sob o comando da ex-diretora do Inep Maria Helena Guimarães de Castro, o sistema sofreu os primeiros impactos decorrentes das fortes pressões dos lobbies do ensino privado.
Houve um afrouxamento geral em todas as pontas. Que resultou num verdadeiro laissez-faire, infelizmente ainda em vigor.
1.
Perderam-se os mecanismos de interlocuçãoAté 2002, o MEC contava com comissões de professores das diversas áreas que permitiam a interlocução e um instrumento de aferição e consulta das áreas. Os cursos que faziam Provão tinham a Comissão do Provão, depois chamadas Comissões de Avaliação. Havia encontros anuais com os coordenadores dos cursos que se submetiam ao Provão. Foi num desses encontros que, diante da evidência da impressionante desqualificação dos cursos públicos em termos de equipamentos, conseguiu-se uma audiência dos coordenadores de cursos de Jornalismo de universidades federais com o então ministro da Educação. Da reunião resultou uma retomada de uma velha licitação de 1996, acrescida de 25%, que permitiu equipar os cursos de Comunicação das instituições federais.
Uma outra experiência, menos midiática, também se extinguiu em silêncio. O MEC mantinha comissões de especialistas das mais diversas áreas que traçavam as políticas, estabeleciam diretrizes e parâmetros, e cuidavam dos padrões de qualidade para autorizações e reconhecimentos de cursos. Seus membros tinham mandatos de dois anos. Em meados de 2002, encerrou-se o mandato das comissões nomeadas em 2000. O governo simplesmente não nomeou substitutos e deixou de contar com os especialistas.
Sem as comissões do Provão e as comissões de especialistas, os cursos de graduação e o MEC ficaram sem qualquer tipo de interlocução. Verdade que também não houve nada. Ninguém demandou nada de ninguém.
Quando se criou a comissão de especialistas em Jornalismo, houve uma grita geral. Quando a Comissão do Provão foi instalada pela primeira vez, três dos seus componentes haviam sido indicados pela Federação Nacional dos Jornalistas. Esta rapidamente ‘desindicou-os’, mas dois deles permaneceram, para estupefação dos dirigentes sindicais.
A cada ano, dois grandes espetáculos midiáticos. Quando da aplicação das provas, o boicote dos estudantes de jornalismo ascendia às manchetes apesar da adesão cada vez mais crescente no geral. O mesmo quando da divulgação dos resultados.
Hoje, não temos avaliação. Nem espetáculos midiáticos. Nenhuma das alternativas ao Provão sugeridas por entidades estudantis vingou.
2.
A cultura da avaliação esvaneceu-seDepois de nove meses, o governo anuncia, com certa solenidade o Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior) e o Conaes (Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior). Duas siglas que não aparecem nos jornais simplesmente porque produzem pouco. Um é ‘sistema’, outro é ‘conselho’: ambos cuidam da avaliação do ensino superior.
Montaram uma colcha de retalhos unindo alguns pedaços do antigo sistema de avaliação concebido por Murilio Hingel, ministro da Educação no governo Itamar Franco, com algumas idéias de petistas ilustres da academia. O foco não era mais o curso, mas as instituições. E o sistema todo partiria de um processo de auto-avaliação. Em verdade, não se avançou nada. E é verdade que alguns espertos conseguiram uns trocados oferecendo ‘consultoria’ para instituições privadas. Nas instituições públicas, se alguém deu algum passo desses foi silencioso e longe da imprensa.
3.
O sistema de autorização de cursos afrouxou-se.Não é propriamente falso afirmar que a expansão do ensino superior privado cresceu acima de quaisquer expectativas. No caso dos cursos de Comunicação, as exigências até 2002 eram duras, rigorosas e custosas (os cursos tinham que contar com todos os laboratórios que usariam no primeiro ano e mostrar as condições de montá-los nos anos seguintes). As comissões de especialistas reuniam-se regularmente e nenhum processo de autorização tramitava sem o seu aval.
Com o fim das comissões de especialistas, as autorizações passaram a ser avaliadas de forma bem mais simples. A instituição informava o interesse em abrir o curso no seu Plano de Desenvolvimento Instituicional (PDI) e nele incluía o projeto do tal curso. Desde então, uma comissão de professores de diversas áreas visita a instituição, confere o PDI e aprova os cursos em bloco.
Qual o poder de uma comissão composta, por exemplo, por professores de Nutrição, Educação Física, Jornalismo, Pedagogia e Administração?
4.
A quase totalidade dos cursos está na ilegalidadeA Lei de Diretrizes e Bases decorrente da Constituição de 1988 determinou que os cursos teriam reconhecimento com validade variável de dois a cinco anos, conforme os resultados da avaliação. Como houve uma profusão de criação de cursos novos, o MEC optou, em 2002, por priorizar a avaliação desses cursos.
Os tais cursos novos tinham apenas autorização de funcionamento e o diploma não seria emitido se o curso não fosse reconhecido. Os padrões de qualidade que as comissões de especialistas prepararam foram abandonados em troca de um instrumento único. Quem duvida que o lobby do ensino privado faturou mais esta, que aponte um único curso que não tenha sido reconhecido. O sistema é tão eficiente que um curso que merece ser fechado é reconhecido por dois anos. Um curso com muitos problemas vale por três anos. E tais reconhecimentos vão se sucedendo…
E os cursos mais tradicionais, que já existiam e funcionavam com o reconhecimento para todo o sempre? Continuam assim, com raras exceções. O MEC não os procura. Eles se fazem de desentendidos. E a ilegalidade continua.
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Jornalista, professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo