A entrevista do presidente da República ao Roda Viva (7/11/05) serviu – mais uma vez – para mostrar que os políticos brasileiros já entenderam tudo sobre o jornalismo brasileiro, notadamente o televisivo. A previsibilidade das perguntas, a indisponibilidade de jornalistas se contraporem ao entrevistado, sua timidez em apontar inconsistências e contradições, permitem ao entrevistado experiente nadar de braçada. Foi o que aconteceu com o presidente. Nadou de braçada.
A observação não tem a finalidade de dirigir críticas aos específicos entrevistadores do presidente da República, pois é improvável que, se outros tivessem sido os jornalistas, diferente tivesse sido o resultado. O problema está, de um lado, na percepção que jornalistas têm do público e, de outro, na forma como o jornalismo brasileiro é exercitado. Público e práticas induzem e consagram determinadas atitudes e comportamentos.
Houve quem tivesse atribuído a xoxidão da entrevista ao ambiente palaciano no qual ela se deu, à disposição das cadeiras, à presença de bandeiras e coisas como essas. Acredito que se possa descartar tais explicações sem maior sobressalto.
O fato de o entrevistado ser o presidente da República e não uma pessoa qualquer, também aventado por alguns como motivo para a fraqueza da entrevista, tampouco atinge o problema. Fora o fato de que dificilmente aqueles específicos entrevistadores do presidente se deixassem impressionar além da conta pela ‘liturgia do cargo’.
Não, o problema é anterior, residindo na atitude metodológica com que entrevistadores abordam entrevistados, em especial na televisão.
Desfaçatez tolerada
O nível do leitor/telespectador brasileiro é muito baixo. Num país em que (segundo pesquisa da Fundação Paulo Montenegro) 67% das pessoas são analfabetas funcionais, a maior parte dos telespectadores e uma boa parcela dos leitores de jornais e revistas não é capaz de compreender uma frase que tenha mais de quatro ou cinco palavras bem simples: ‘Dois chopes e uma porção de batatas fritas’ estabelece mais ou menos o limite interpretativo do leitor médio brasileiro. Subentendidos e ironias, nem pensar. Tudo precisa ser literal e muito raso.
Há ainda a maldição da ‘cordialidade brasileira’. No Brasil, é feio criticar, contrapor-se, exigir explicações. O diálogo brasileiro tende a ser o antidiálogo, uma babel em que cada participante fica contente em dizer o que quer e evita cuidadosamente incomodar o interlocutor. O sujeito que não se comporta dessa maneira tende a ser malvisto pelo público. Isso molda o jornalismo quando televisionado, em especial no formato de entrevista coletiva. Um entrevistador faz uma pergunta, o entrevistado responde qualquer coisa que lhe dê na telha, o próximo jornalista faz nova pergunta totalmente desligada da primeira e assim corre o tempo.
O baixo nível do público trabalha em favor do entrevistado, que procurará sempre baixar o nível o máximo possível. Cafajestadas não pegam mal e sequer são apontadas como tais. (Quanto a isso, uma imagem persistente vem à mente, do célebre debate televisivo Lula vs. Collor, durante a campanha eleitoral de 1989. A certa altura, um entrevistador fez uma pergunta a Collor referindo-se a números ou apreciações oriundos do tributarista Ives Gandra Martins. Collor não respondeu e descartou o tema pela simples afirmação de que o sr. Gandra Martins seria, ‘notoriamente’, um petista. O jornalista que havia feito a pergunta não se deu ao trabalho de apontar a desfaçatez e Lula também não, como poderiam perfeitamente ter feito. Não há tampouco registro de retificação por parte do sr. Gandra Martins.)
Agressividade metodológica
Talvez em parte porque se preocupam demasiadamente com sua imagem perante o público, jornalistas desenvolvem hábitos que muitas vezes resultam em deterioração da informação que extraem de seus entrevistados. Digo ‘muitas vezes’ e não ‘por vezes’ porque é isso mesmo. Qualquer pessoa que esteja acostumada a conceder entrevistas sabe que, na maior parte dos casos, conseguirá vender qualquer peixe se o peixe for embrulhado direito. Os cadernos de economia e negócios estão aí para demonstrá-lo.
Ora, por que raios jornalista precisa ser chapinha do entrevistado? Jornalista precisa ser agressivo na pergunta (mas não mal-educado, é claro, o que também tem muito por aí). Se o jornalista perde a noção da agressividade metodológica, perde a sua razão de ser.
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Diretor executivo da Transparência Brasil, organização dedicada ao combate à corrupção no país; editor do blog A coisa aqui tá preta