Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os surtos da imprensa alucinada

A filósofa Marilena Chaui tocou num ponto sensível, em palestra a operários durante o 5º Congresso dos Metalúrgicos do ABC, na sexta-feira (4/11), ao afirmar que a imprensa ‘alucina’ quando seus interesses são contrariados. Ao fazer uma comparação entre a mídia e a Inquisição, a pedido de um dos presentes, a pensadora petista afirmou que o Tribunal do Santo Ofício era menos perverso, uma vez que suas normas eram claras, ao contrário dos julgamentos midiáticos, que variam conforme determinada estratégia de poder, sobre regras circunstanciais.

Descontados os exageros da musa petista, e calculadas as variáveis produzidas pela versão que a imprensa nos oferece de seu diálogo com os metalúrgicos, Marilena Chaui traz a público um aspecto da crise política que exige uma atenção especial. Quando diz que a imprensa ‘alucina’, ela toca numa questão fundamental sobre o funcionamento da mídia nas duas últimas décadas, especialmente a partir da formação dos grandes conglomerados multinacionais e da crescente mistura entre notícia e espetáculo.

No cenário internacional, o noticiário que precedeu a invasão do Iraque é exemplo dessa alucinação, quando se criou na opinião pública, globalmente, uma relação direta entre o governo de Saddam Hussein e os atentados terroristas contra os Estados Unidos. Em termos regionais, a demonização do presidente venezuelano Hugo Chávez tem sido imposta de tal maneira que se torna impossível ao leitor comum – que não tem acesso a fontes alternativas de informação – afastar-se da imagem que a imprensa faz dele.

Clara intenção

No Brasil, ambiente que ilustrava a palestra de Marilena Chaui, a melhor expressão de imprensa ‘alucinada’ é a revista Veja que, ao tratar do atual governo, ultrapassa qualquer limite de sensatez não apenas na ponderação entre os temas, mas principalmente na falta de qualquer preocupação em sequer parecer ponderada. Em tudo se assemelha à imprensa venezuelana, que chegou a organizar, respaldar e conduzir um golpe de Estado contra Chávez.

Lula não é Chávez, o governo petista nada tem, na prática, que o assemelhe ao movimento que o dirigente venezuelano batizou de ‘revolução bolivariana’ e, tanto lá quanto cá, nenhuma restrição foi imposta à liberdade de imprensa, mesmo em meio a crises institucionais. No entanto, não apenas a revista da Editora Abril parece haver sido tomada pelo espírito do Grupo Cisneros, dono de um dos maiores conglomerados de comunicação da América Latina e símbolo da imprensa conservadora da região, mas também os principais diários brasileiros parecem possuídos pela idéia fixa de condicionar a opinião pública ao longo dos próximos 12 meses.

Já muito se falou aqui desse processo de desconstrução da figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a decisiva contribuição de seu partido e alguns de seus auxiliares diretos. Não se pode prever se a imprensa nacional será bem-sucedida em sua clara intenção de impedir a reeleição de Lula. Também não há pitonisa capaz de adivinhar que chances teremos de melhorar o atual estado de coisas ou que risco correremos de retroagir ao período das instabilidades com esta ou aquela alternativa eleitoral. O que, sim, se pode afirmar é que a imprensa está jogando perigosamente com seu próprio futuro, ao ultrapassar a linha do bom senso jornalístico no trato dos temas institucionais.

Parte, e não fórum

‘Alucinada’ ou calculadamente escandalosa, a imprensa brasileira há muito passou dos limites na manipulação de informações, na entrega de suposições à guisa de provas cabais, no julgamento precipitado e no trato desproporcionado de assuntos assemelhados conforme o protagonista lhe seja simpático ou não. Nos períodos de crise é quando a sociedade mais necessita ser apresentada a reflexões ponderadas, confiáveis e integradoras. Esses são os períodos propícios ao engajamento cívico, ao debate sobre o tipo de nação que queremos construir, sobre a natureza mesma da nossa sociedade.

Se tivesse tido coragem moral ou ambição intelectual para penetrar fundo na questão da fragilidade das nossas instituições – correndo o risco de ver questionada a própria estrutura do nosso sistema de comunicação social –, a imprensa poderia ter alcançado como resultado uma maciça convergência no sentido da condenação da corrupção, com todos os efeitos sobre as chances de reeleição do presidente Lula, e ao mesmo tempo estaria se qualificando como parceira da sociedade na defesa dos interesses coletivos fundamentais.

Poderíamos já ter abreviado a presente crise, com a definição clara das responsabilidades, e a imprensa estaria emergindo mais forte e com mais credibilidade, certamente se apresentando, em termos de escolha de consumo, como alternativa valiosa para o público. Ao preferir entrar no jogo político, como parte e não como fórum, a imprensa definiu claramente que deseja um resultado específico. Com isso, contribui para dificultar o entendimento dos fatos, aplaina o caminho para que a crise se estenda até as eleições de 2006 e, quando os fatos contrariam seus propósitos, entra em surto alucinatório.

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Jornalista