Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia, violência e racismo nas cités

O nome tem sonoridades que fazem sonhar: Clichy-sous-Bois. Mas que ninguém se engane. O bosque está em chamas. Foi nesse lugar, que evoca aprazíveis passeios a pé sobre as folhas do outono, que a França começou a despertar para o mais recente pesadelo. Clichy-sous-Bois é apenas uma cidade-dormitório de Paris, onde começou o fogo que uma polícia bem equipada e bem treinada tenta, em vão, há 11 dias conter. Talvez porque o problema não é policial, mas social. E não é de Clichy, mas da França inteira.


A banlieue parisiense foi o epicentro de um furacão que se espalhou pela França e até agora não se sabe onde vai parar. As conseqüências visíveis são carros, ônibus, escolas e lojas incendiadas. Até esta segunda-feira (7/11), 1.320 pessoas já haviam sido presas por ‘incitarem à violência ou participarem diretamente de atos violentos’. Nos 11 dias de enfrentamentos da polícia com os jovens, 4.700 carros foram incendiados, diversas lojas, escolas, centros de lazer e creches foram consumidos pelo fogo.


Por que a onda de violência?


Como se sabe, o papel da imprensa é não somente informar e relatar, mas contextualizar, explicar, analisar. E isso os jornais franceses, sobretudo os de circulação nacional como Le Monde, Libération, L’Humanité e Le Figaro, têm se esforçado por fazer.


Os que estão mais à esquerda não deixam de apontar a responsabilidade do governo de direita de Jacques Chirac e Dominique de Villepin nos acontecimentos recentes. Libération lembrava na segunda-feira (7/11) que a direita destruiu o projeto do governo ex-primeiro ministro Lionel Jospin de polícia de proximidade, além de ter cortado todas as verbas para ações sociais nos municípios.


Entrevistado ao vivo em cadeia de televisão, o primeiro-ministro Villepin anunciou nesta segunda-feira a volta das verbas para os programas sociais e se recusou a comentar os excessos verbais do ministro do Interior Nicolas Sarkozy, invocando o interesse de união do governo para combater a violência. Ele anunciou também a restauração de uma lei de 1955 que decreta o toque de recolher quando necessário. O principal telejornal noturno do canal France2 entrevistou no domingo (6/11) um sociólogo para tentar explicar por que os jovens incendeiam carros e até mesmo escolas e creches de suas próprias comunidades. Ele deu uma lição de sociologia que não seria desaprovada por Pierre Bourdieu, apesar do (sempre escasso) tempo televisivo.


Para tentar entender as razões da violência, o jornal Herald Tribune (5/11) entrevistou dois jovens ‘originários da imigração’ – como os chamam os jornais franceses. Ambos falavam do mal-estar e da crise de identidade em que vivem. O filho de africanos e o filho de argelinos contavam ao jornal a dificuldade de viver num país que lhes dá a nacionalidade, mas não os considera 100% franceses. Eles, por outro lado, não se sentem nem um pouco ligados ao país de origem dos pais. O resultado é uma crise identitária. Da leitura dos jornais, o que se constata é a incapacidade do mundo político de dizer qualquer coisa coerente sobre a questão da imigração.


Mais repressão


O jornal Le Monde, que inaugurou novo projeto gráfico e editorial na segunda-feira (7/11), dedica cinco páginas dessa edição à cobertura dos acontecimentos. Jacques Chirac é sutilmente criticado a partir do título de uma das matérias: ‘Jacques Chirac reage dez dias depois do início da crise’. Somente no domingo à noite, depois de uma reunião de emergência com seus ministros, Chirac resolveu se dirigir à nação no pátio do palácio do Eliseu.


O silêncio ensurdecedor do presidente é uma forma de omissão calculada, pois ele não tem uma fórmula mágica para apagar o fogo. Seu discurso falava de firmeza e de ‘prioridade absoluta ao restabelecimento da segurança e da ordem pública’. Mas o que isso quer dizer senão mais repressão?


De vez em quando os jornais franceses noticiam processos na Justiça de pessoas que querem comprar um imóvel e não podem fazê-lo quando o proprietário descobre o nome do interessado. ‘É preciso que os franceses aceitem empregar e alugar apartamentos a negros e árabes’, pediu Mounir Barbouchi, professor de esporte em um liceu de Val d’Oise, subúrbio de Paris, depois de um encontro com o ministro Dominique de Villepin.


Jovens contra Sarkozy


Os jovens revoltados são os mesmos que foram chamados em momentos diferentes de voyous (vadios, vagabundos) e racaille (gentalha, escória, ralé) pelo ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, em imagens transmitidas pelas televisões numa visita a uma cité (bairro popular), antes do acontecimento que desencadeou a violência atual.


Deve-se lembrar que a onda de violência começou em 27 de outubro, depois que dois jovens de 20 anos foram eletrocutados numa central da EDF (Électricité de France, a companhia estatal de eletricidade), em Clichy-sous-Bois. Eles eram perseguidos pela polícia e três deles pularam um muro da central. Dois morreram e um terceiro escapou gravemente queimado.


Sarkozy negou que estivessem sendo perseguidos pela polícia e não teve nenhuma palavra de compaixão pela sorte dos jovens mortos. A versão divulgada pela mídia eletrônica foi o desmentido de Sarkozy, repetido vários dias. Agora, os jornais dão mais espaço à versão do jovem sobrevivente, que garante que os três estavam sendo, sim, perseguidos por policiais. E mesmo sem terem feito nenhum ato ilegal, fugiram com medo. Como o brasileiro no metrô de Londres…


O que é dramático é que as batidas da polícia francesa nas cites – os verdadeiros guetos das classes trabalhadoras dos arredores das grandes cidades como Paris – apavoram os jovens. Os flics [policiais] franceses são racistas e violentos. Mesmo dentro de Paris, quando se vê um controle de identidade, em geral o controlado é negro ou descendente de árabe. Os carros queimados são, segundo esses jovens ouvidos pela imprensa, um protesto pela morte dos dois rapazes, perseguidos injustamente; pela mentira de Sarkozy para tirar a responsabilidade da polícia; pela indiferença do ministro e pelos termos humilhantes com que ele se referiu aos habitantes das cités em geral. E mais: pela bomba de gás lacrimogêneo jogada pelos policiais numa mesquita onde alguns muçulmanos rezavam. Eles querem pura e simplesmente a demissão de Sarkozy.


‘Boa imagem’


Apresentados na imprensa como movidos pelo ódio e pela exclusão social, a maioria desses jovens dos subúrbios tem, realmente, um passado de humilhação e sentimento de abandono por parte da République, que lhes dá a carteira de identidade francesa mas lhes recusa a cidadania plena.


Os jovens das cités têm como ponto comum o fato de serem descendentes de imigrantes magrebinos (argelinos, marroquinos ou tunisianos) ou africanos, viverem em subúrbios construídos como cidades-dormitórios ao redor de Paris, sofrerem na pele o desemprego (que chega a 45% entre os jovens de 15-25 anos de algumas cités) e virem de experiências de fracasso escolar. Apesar de franceses, esses jovens navegam entre duas culturas, a dos pais e a do país em que nasceram, e são discriminados pelos franceses de souche, isto é, de origem branca.


Onze dias depois do acidente que desencadeou a violência diária que já se espalhou pela França inteira, os jornais de circulação nacional continuam tentando entender como o fogo pôde se propagar e aumentar de intensidade a cada dia. Mas apesar da moderação da linguagem e das críticas feitas ao destempero do ministro do Interior, que se refere aos jovens dos subúrbios com palavras julgadas inadmissíveis pela maioria dos jornalistas, alguns jornais foram acusados de fazer uma cobertura sensacionalista pela associação SOS Racismo. Segundo a entidade, alguns jornalistas se mostram irresponsáveis ao apresentar as violências como uma ‘guerra civil’ e os jovens como ‘selvagens’.


O jornal Le Parisien-Dimanche publicou no domingo (6/11) uma pesquisa de opinião mostrando que 66% dos franceses acham que o ministro do Interior Nicolas Sarkozy enfatiza demais a repressão e pouco a prevenção; 63% dizem que ele utiliza muitas vezes termos chocantes para um ministro do Interior e 73% acham que suas ações são muito midiatizadas. Mas, com tudo isso, ele continua a ter uma ‘boa imagem’ para 57% dos franceses. [Texto fechado às 21h34 (horário de Brasília) de 7/11/2005]

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Jornalista