Chego a uma escola estadual na periferia da capital de São Paulo. Falta pouco para as 9 horas e faz muito frio. Na rua de baixo, feirantes anunciam seus produtos. O cheiro de gordura da barraca de pastéis impregna o ar de inverno. Em frente ao portão, uma fila vai se formando. São meninos pequenos, franzinos e aparentam menos idade do que realmente têm. Estão de shorts, camiseta, chinelo de dedo, indiferentes ao frio cortante e ao vento da manhã.
‘É sempre assim’, diz a educadora responsável pela escola nos fins de semana. ‘A garotada chega sempre antes da hora, e faz algazarra enquanto espera pela abertura dos portões, que acontece às 9 horas em ponto’. Os meninos demonstram ansiedade para entrar no único refúgio existente naquele bairro pobre e violento. A escola oferece quadra de esportes, árvores frondosas e, principalmente, espaço para brincar em segurança.
E é isto que eles fazem o dia inteiro: correm sem parar, de uma atividade a outra. Da mesa de pingue-pongue ao teatro de bonecos; do campeonato de futsal à capoeira; da capoeira para a aula de break dance. E entre uma atividade e outra fazem várias paradas na cozinha da escola, onde a avó de um deles, a mãe de outro e uma irmã fazem aula de culinária para aproveitar melhor os alimentos, não jogar fora fontes de proteínas, cálcio, ferro e vitaminas, de que eles tanto precisam para crescer.
Do forno da padaria artesanal instalada na cozinha, o único lugar aquecido dessa escola, saem pães recheados feitos pelo pai de um aluno, que está desempregado e busca uma forma de se profissionalizar para sustentar a família em tempos tão difíceis.
Em outra escola, situada em um bairro de classe média da capital, é oferecida uma oficina de pipas, especialidade que o avô de um aluno ensina às futuras gerações com a paciência dos que têm tempo de sobra. Dividindo o pátio com ele, uma mãe fantasiada de odalisca ensina a um grupo atento os rudimentos da dança do ventre. A música árabe abafa o som da rádio, pilotada pela turma do funk.
De volta a uma escola da periferia, vejo logo na entrada, sentados em volta de uma mesa de armar, indiferentes aos transeuntes, pai e filho que jogam xadrez. A partida está desequilibrada. O menino encurralou o pai, concentrado em busca de salvação para sua rainha.
À medida que o dia avança, a escola acolhe mais e mais gente. Vejo uma senhora de origem japonesa ensinando a arte milenar do origami a um grupo de crianças. Ao seu lado, o neto, ainda um menino, também ‘professor’ no fim de semana. Ela já traz de casa os papéis coloridos e cortados, sem os quais a aula não seria possível. Avó e neto moram em um bairro de classe média e cruzam a cidade de carro todo domingo de manhã. Ela chegou à escola como voluntária, a convite de uma amiga.
Parcerias ricas
Em três anos de existência, o programa Escola da Família reúne cerca de 30 mil voluntários como essa avó e seu netinho, 6.000 educadores profissionais e mais 35 mil universitários oriundos da escola pública que, em troca de trabalhar nas escolas aos finais de semana, recebem bolsas de estudo para concluir seus cursos nas universidades privadas do Estado de São Paulo conveniadas ao programa.
O objetivo do Escola da Família é oferecer um espaço seguro, saudável, alegre e instrutivo para que as crianças, os jovens e suas famílias desfrutem os sábados e domingos. As atividades giram em torno de quatro eixos: esportes, cultura, saúde e qualificação para o trabalho. E são uma oportunidade para as pessoas saírem de casa, deixarem o sofá e a televisão de lado, desenvolverem seu pontencial para aprender e ensinar. Em uma palavra, conviver.
Essa vivência tem contribuído para reduzir o índice de violência nas escolas e no seu entorno (uma média de 40%), mas também para diminuir preconceitos, libertar crianças e jovens de estereótipos, comprovar que existem muitas inteligências e que todas precisam ser valorizadas.
Adoro quando ouço de uma diretora, de uma supervisora, de um coordenador, que tal ‘aluno-problema’ de 2ª a 6ª feira na escola ‘normal’ se converte, magicamente, em solução depois da sexta-feira. Embora considerado medíocre em seu desempenho escolar, é genial na aula de break dance ou na organização de um complexo campeonato de futebol que envolve várias escolas e times de todas as idades.
Depois de ver as comunidades apropriarem-se da escola, é difícil imaginar que estes espaços públicos tenham ficado fechados por tanto tempo. É este espírito de valorização do papel da escola como o centro da comunidade que norteia as mais de 200 milhões de participações em atividades registradas pelos sistemas de informação do programa nos três primeiros anos de existência do Escola da Família – nome que o programa Abrindo Espaços, implantado pela Unesco em vários Estados a partir de 2000, ganhou em São Paulo.
A idéia de abrir todas as escolas nos fins de semana foi do então governador Geraldo Alckmin e do ex-secretário de Educação, Gabriel Chalita, com apoio da Unesco e dos Institutos Faça Parte e Ayrton Senna. Eles agiram inspirados por pesquisas da Unesco que demonstram: 60% dos homicídios juvenis, entre 15 e 24 anos, ocorrem aos sábados e domingos.
A abertura das escolas de uma só vez demandou um grande esforço das equipes da Unesco de Brasília e de São Paulo, então chefiadas por Jorge Werthein. O mérito é também da equipe pedagógica do programa, dos professores, dos diretores de escola e dos titulares de diretorias de ensino. E do apoio de milhares de parceiros: açougueiros; padeiros; donos de armarinho, mercadinho e papelaria; cabeleireiras; pequenos, médios e grandes empresários; todos convencidos da importância da participação da comunidade para melhorar a qualidade da educação da população.
Difícil traduzir a multiplicidade de atividades, a riqueza das parcerias com secretarias de Estado, vizinhos, voluntários, universitários, professores, a teia de saberes e quereres, de afeto e compromisso que está sendo construída nas escolas paulistas.
Considero uma honra fazer parte da equipe responsável por este projeto, implantado sob a liderança da Secretaria de Estado da Educação, hoje comandada pela professora Maria Lúcia Marcondes Carvalho Vasconcelos, e composta por educadores compromissados com a inclusão social e o desenvolvimento humano de seus alunos e de suas famílias.
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Sede e fome de cidadania
Clóvis Rossi (*)
Texto da ‘orelha’ de Dias de paz – A abertura das escolas paulistas para a comunidade, de Gabriela Athias, 140 pp., Unesco, Brasília, 2006
Gabriela Athias tem um grave problema: uma alma bifronte. É, ao mesmo tempo, uma repórter insaciável, o que implica necessariamente uma imensa curiosidade, e uma cidadã com sede e fome de cidadania para todos, especialmente para os que vivem à margem da sociedade.
Por que é um problema? Porque a curiosidade, para ser satisfeita, precisa olhar o país com olhos de ver. Mas, ao fazê-lo, ela apenas aumenta a fome e a sede – e, por inevitável extensão, a frustração por perceber que, entra governo, sai governo, entra século, sai século, o país continua mantendo nas bordas da civilização uma fatia ponderável de sua gente e, pior, de suas crianças, objetivo prioritário da curiosidade de Gabriela.
Como ela confessa logo na introdução, ‘os anos passam, os problemas não se resolvem, e você acaba escrevendo muitas vezes a mesma coisa e vivendo a angústia de não enxergar saídas concretas capazes de quebrar o ciclo de pobreza da maioria dos brasileiros’.
Este livro é, de alguma forma, uma fuga à frustração. Há nele histórias concretas de avanços. Gabriela Athias, com a franqueza crua de quem não fecha os olhos à realidade, admite que as escolas retratadas no livro ‘não resolveram os problemas das famílias dos seus alunos, mas são um exemplo de que diretores e professores têm uma função aglutinadora e que, com a participação ativa da comunidade, são capazes de promover dias de paz nos lugares mais violentos de qualquer cidade brasileira, não apenas em São Paulo’.
Seria mais ‘marqueteiro’ vender o livro como a panacéia universal. Mas sua autora tem plena noção de que o Brasil e suas crianças não precisam de marketing.
Precisam, para começar, de ensino básico de qualidade.
Convido o leitor a viajar com ela nos primeiros passos de uma jornada que precisa ser completada com tremenda urgência. Tomara que a alma da moça o contamine.
(*) Jornalista da Folha de S.Paulo
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Coordenadora do escritório da Unesco em São Paulo