Era uma pauta padrão – daquelas que não oferecem desafio, tampouco impacto. Um grupo de dança se apresentaria em um hospital infantil para alegrar os rostinhos doentes. Minha missão era registrar a reação das crianças perante as bailarinas. Na ponta dos pés e com tutus brancos, as dançarinas de balé encantaram a todos na ala da enfermaria que abrigava crianças com câncer. Eu estava contente com a boa ação. Mas meu mundo entrou em transe quando passei pela frente de um quarto escuro.
A porta estava semiaberta. Pude enxergar um menino deitado sob um cobertorzinho com desenhos infantis. A única claridade do quarto entrava pela porta e pelas frestas horizontais da persiana, do outro lado do quarto. Em frente à janela, havia a silhueta de uma mulher sentada, de cabeça baixa, perto do menino. Mais do que a certeza de que eram mãe e filho, tive noção do sofrimento deles, o que me foi como um soco no olho. Era a silhueta da tristeza e do mundo que desabou rápido demais para uma família feliz. O amor materno vivendo um terremoto – e uma infância em sépia, atravessando o inferno sem entender os motivos. O que aquele menininho lembraria como “infância”?
Mãe e filho não se renderam aos encantos da arte da dança. A festa do balé não roubou seus olhos do escuro. Não levou suas dores para dançar e rodopiar, como fez com outras crianças carequinhas, em recuperação. Ambos viviam em um espaço sem tempo; os ponteiros do relógio haviam levado um nó da dor. Todos no hospital haviam se encantado com as piruetas das bailarinas, todos estavam felizes com as rendas dos tutus branquinhos. Mas aqueles que mais precisavam da esperança e da paz que a dança transmite estavam aprisionados em um quarto de enfermaria, aprisionados por uma doença covarde. Presos a essa doença destruidora, como uma bomba-relógio em cada célula que se reproduz malignamente. Provavelmente, ainda estavam no começo do caminho escuro que é entender as geografias de uma doença e encontrar forças para vencê-la.
Monstro, só se for o de mentirinha
Fiquei a olhar o quarto por mais ou menos um minuto. Foi o tempo necessário para que minha pauta, que eu considerava cumprida, ganhasse outra cor. Ganhasse reticências. Fosse premiada com uma visão que os outros repórteres não tiveram. Nesses 60 segundos, meus olhos satisfeitos sofreram a metamorfose do susto. Fui eletrocutada com a realidade. Minha paz de espírito estava na cadeira elétrica, levando choques sem morrer. Meu coração era pisoteado pela maldade da vida – aquela que não se sabe quem é o vilão.
Nos 60 minutos seguintes, não conseguia tirar aquela imagem da cabeça. Fechava os olhos e via a imagem colada em minhas pálpebras. Seis horas depois, a matéria estava pronta e editada. Coloquei no texto o movimento da felicidade e também a escuridão de quem não enxerga luz no fim de suas trevas. Dois meses depois, ainda pensava no menino, orando todas as noites. Dois anos mais tarde, essa imagem ainda se infiltrava em meus sonhos, em sépia. Hoje, quatro anos depois, tenho noção de que em toda a parte do mundo existem quartos escuros com pessoas inocentes, vítimas de monstros que surgem do próprio sangue, das próprias células, da própria mente, da própria história. O monstro da morte. Com os quais todos nós, em algum aspecto e capítulo da vida, podemos deparar. Mas que, na infância, pelo amor de Deus, é covardia. Monstro, só se for aquele de mentirinha que mora debaixo da cama.
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[Vanessa Bencz é jornalista, Joinville, SC]