Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Chega de intermediários, banqueiros no governo

Os desdobramentos mais graves da crise econômica que assola a União Europeia, notadamente a queda dos governos da Grécia e Itália, mereceram da maior rede de televisão brasileira, uma cobertura que inova no mimetismo ideológico. A conhecida repórter Ilze Scamparini, correspondente da TV Globo, deixou de lado o jornalismo e assumiu o papel de “porta-voz” dos banqueiros e financistas.

Em quatro reportagens veiculadas no Bom Dia Brasil e Jornal Nacional (de 8 a 11/11/11), resta evidente a precisa análise de Bernardo Kucinski: “O modo de pensar estritamente ideológico, composto apenas por ideias acabadas, é antijornalístico porque prescinde dos fatos, que são os fundamentos do jornalismo. (…) Manifesta-se no reducionismo da discussão, o desprezo pelo factual e pouco trabalho analítico”.

Mesma cantilena

Já de saída, Scamparini não deixa dúvida sobre o lado dominante da notícia:

“O dia começou com a pressão do mercado financeiro para que Silvio Berlusconi peça demissão. (…) Os jornais apostam na sua renúncia. (…) A Itália está desacreditada, e os investidores não confiam que este governo seja capaz de promover medidas necessárias para combater a crise” [ver aqui, grifos nossos].

Entre a pressão do “mercado financeiro” (um sujeito oculto, difuso); a “aposta” dos jornais impressos, a Itália restava “desacreditada” (a repórter não indica por quem exatamente) e finaliza jurando que “os investidores (outra vez, fontes e sujeitos ocultos, talvez esotéricos) não confiam” no governo Berlusconi. O que pensam vozes discordantes na sociedade italiana, trabalhadores, partidos de oposição, personalidades, especialistas independentes ou outras fontes não faz a menor diferença, na visão da jornalista (e da TV Globo, por supuesto). No dia seguinte, ela consegue alcançar um patamar inimaginável que é ler a mente do “mercado financeiro”:

Demissões não se anunciam, se apresentam. É o que pensa o mercado financeiro. Todas as bolsas europeias despencaram, precipitando a Itália em uma zona de risco próxima do calote. (…) Em uma entrevista a um dos seus canais de TV, o primeiro-ministro afirmou que, depois da sua renúncia, a única alternativa serão novas eleições. O mercado financeiro prefere um governo de transição para não bloquear os trabalhos na Câmara” [ver aqui, grifos nossos].

Apurando no nível obscuro, entre técnicas telepáticas sofisticadíssimas e fontes esotéricas inconfessáveis, a jornalista continua desinformando o distinto público. Mais grave que isso: em flagrante desrespeito aos princípios e normas dos “Princípios Editoriais das Organizações Globo“, divulgados recentemente em horário nobre. Com efeito, neste documento, a empresa faz uma profissão de fé:

Na apuração, edição e publicação de uma reportagem, seja ela factual ou analítica, os diversos ângulos que cercam os acontecimentos que ela busca retratar ou analisar devem ser abordados. O contraditório deve ser sempre acolhido, o que implica dizer que todos os diretamente envolvidos no assunto têm direito à sua versão sobre os fatos, à expressão de seus pontos de vista ou a dar as explicações que considerar convenientes” [grifos nossos].

Num momento delicado e grave, pelo qual passam as sociedades grega e italiana, a voz do contraditório ou ainda qualquer nesga de análise que pudesse acrescentar algum grau de qualidade e conhecimento ao público, é pura e simplesmente ignorada em nome da retórica e do discurso político. Informação, análise, contexto histórico, pluralidade de fontes… Às favas o bom jornalismo! O ápice da incursão de Ilze Scamparini ainda estaria por vir. Sem nenhum pudor ela comenta a troca de governo na Grécia:

Depois de quatro dias de negociações tensas, os principais partidos políticos da Grécia chegaram a um acordo sobre quem vai assumir o governo de coalizão. Venceu o currículo do ex-banqueiro Loukas Papademos, escolhido primeiro-ministro do novo governo de coalizão da Grécia. Caberá ao ex-vice-presidente do Banco Central europeu, professor de economia que estudou nos Estados Unidos, a difícil missão de tranquilizar os mercados e os aliados europeus. (…) Na Itália, um perfil semelhante se consolida para substituir Silvio Berlusconi: Mario Monti, professor de economia, estudou nos Estados Unidos e é ex-comissário europeu, admirado pelos banqueiros” [ver aqui, grifos nossos].

O tom dessa angulação foi manchete na Folha de S.Paulo (10/11/2011): “Mercados fazem pressão para Berlusconi sair logo”. No texto de Vaguinaldo Marinheiro (de Londres), a mesma cantilena grávida de desinformação: “O mercado queria a renúncia de Berlusconi, mas, quando ele condicionou sua saída à aprovação de novo pacote de austeridade, deixou no ar a incerteza sobre quando ela será efetivada”.

Sem contexto

A informação, nas páginas da Folha ou nas telinhas da Globo, é finalmente sacralizada no altar do “mercado”, submetida à lógica do capital financeiro, consagrando a vitória dos tecnocratas e banqueiros – e seus prepostos – sobre o interesse público. Ante a maior crise política e econômica de sua história recente, os italianos veem seus destinos repousar, pela força política dos banqueiros e especuladores, nas mãos da mesma tecnocracia que o condenou. Rapidamente, assegurou servilmente a repórter Ilze Scamparini: “Nesta quinta-feira (10/11), os indicadores econômicos mostraram que a Itália pode recuperar a confiança dos investidores. Os juros dos títulos da dívida baixaram”.

O conteúdo exibido pela TV Globo, aqui brevemente analisado, nada tem a ver com a noção de jornalismo firmado em seus “Princípios Editoriais”:

Pratica jornalismo todo veículo cujo propósito central seja conhecer, produzir conhecimento, informar. O veículo cujo objetivo central seja convencer, atrair adeptos, defender uma causa, faz propaganda. Um está na órbita do conhecimento; o outro, da luta político-ideológica. (…) As Organizações Globo terão sempre e apenas veículos cujo propósito seja conhecer, produzir conhecimento, informar” [grifos nossos].

Ocupando diretamente a máquina do Estado nos dois países, os banqueiros e financistas aplaudem, no território midiático, os novos governos de Papademus e Monti. Ambos são símbolos do poder financeiro pairando nos céus da “nova” União Europeia. O arremedo de jornalismo praticado e produzido pela principal rede de televisão do país se presta, exclusivamente, à luta político-ideológica como seus próprios manuais indicam: sem qualidade, informação, contexto ou história – que não seja ditada pelos “deuses do mercado financeiro”.

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[Samuel Lima é docente da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB), professor-visitante do curso de jornalismo da UFSC e pesquisador do objETHOS]