Quem instalou a primeira tipografia no Brasil? Vários historiadores afirmaram que foram os padres jesuítas. Mas a questão é controvertida.
Alfredo de Carvalho, em Gênese e Progressos da Imprensa Periódica no Brasil, observa que, ainda no século XVI, os padres jesuítas levaram a arte tipográfica “às mais remotas paragens do Oriente”, como Japão, China e Índia, e no século XVII às colônias portuguesas da África Ocidental, de Luanda e São Salvador, então a capital do Congo. Segundo Carvalho, o objetivo dos impressos da Companhia de Jesus era dar “à luz preciosos vocabulários e gramáticas das línguas indígenas, cujo mérito o tempo não deslustrou”. Ele repete a afirmação do historiador alemão Carl Faulmann, de que não é inverossímil que na mesma época existissem também no Brasil tipografias fundadas pelos jesuítas, e comenta que seria plausível, considerando a importância de sua participação na obra de colonização do país a partir de 1549.
Rubens Borba de Moraes desenvolveu raciocínio semelhante em Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial. Escreveu que podia esperar-se que os jesuítas, muito influentes em Portugal, pleiteassem licença para instalar uma tipografia em alguns de seus colégios no Brasil, como fizeram em outros lugares do mundo.
Alfredo de Carvalho estima que a região mais apropriada no Brasil para instalar um prelo no fim do século XVI e começo do XVII seria Pernambuco. Em Olinda, escreve ele, os jesuítas mantinham desde 1576 “o mais vasto e suntuoso colégio da Companhia no Brasil, onde os padres davam lições de latim e de primeiras letras”. Mas Carvalho reconhece que, apesar da existência de circunstâncias propícias para a instalação de uma tipografia no Brasil pelos jesuítas, nenhuma prova material de sua existência foi encontrada. Laurence Hallewell, em O Livro no Brasil: sua História, repete a informação de Carvalho e diz também que a existência de uma tipografia jesuíta é uma suposição.
“A melhor letra”
Serafim Leite, na História da Companhia de Jesus no Brasil, porém, informa que dois padres, que eram também bibliotecários e encadernadores, teriam estampado livros nos colégios jesuíticos. Um dos padres, no Colégio de Santo Inácio do Rio de Janeiro, teria produzido “400 livros destinados ao uso da casa e dos padres”. Leite afirma ainda que entre os livros da biblioteca havia “alguns impressos na própria casa por volta de 1724”. Outro prelo jesuíta teria funcionado na Bahia. Mas, de novo, não existem outras evidências sobre essas atividades além das referências feitas por Leite.
Isso não significa, porém, que os jesuítas não tenham estampado livros de catequese em Pernambuco, Rio de Janeiro ou Bahia. Simplesmente, não existem evidências.
Mas a suposição de Alfredo de Carvalho de que, assim como fez na Ásia e na África, a Companhia de Jesus queria imprimir obras para a catequese dos indígenas também no Brasil, tem fundamento. Há provas concretas de que, no período colonial, a Companhia de Jesus quis instalar realmente uma tipografia. Não no Nordeste ou no Rio de Janeiro, mas nas missões guaranis que os jesuítas mantinham no Sul do país.
Já em 1632, o padre Juan Bautista Ferrusino, um milanês que era procurador da ordem no Paraguai, viajou a Roma, onde pediu ao procurador-geral da congregação jesuíta que “nos mande dar das províncias da França ou da Alemanha e Flandres algum irmão que entenda disso (a arte tipográfica) para que, comprando um prelo, se possa conseguir este efeito de grande importância para o bem das almas”. Dois anos mais tarde, o procurador no Paraguai insistia no pedido.
Nessa época, já tinham sido instaladas pela Companhia de Jesus dezenas de reduções (agrupamentos) de índios guaranis na vasta região então conhecida genericamente como Província Jesuíta do Paraguai, território que hoje forma parte do Paraguai, Brasil, Argentina, Bolívia, Uruguai e Chile.
Enquanto não chegava o prelo solicitado, o padre Antonio Ruiz de Montoya, nascido no Peru e chamado “Pai Guaçu” pelos guaranis, viajou para a Espanha com vários manuscritos em língua indígena. Ele tinha transcrito para o alfabeto latino os sons do guarani, uma língua ágrafa, isto é, sem escrita. Foram impressos quatro livros em Madri, em 1639 e 1640: Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañía de Jesús en las Provincias del Paraguay, Paraná, Uruguay y Tape; Tesoro de la Lengua Guarani, que foi a primeira e principal gramática em guarani; Catechismo de la Lengua Guaraní; e Arte, Bocabulario de la Lengua Guarani.
Essas obras eram importantes para alfabetizar e ensinar os índios e também para os padres aprenderem guarani, a única língua que a Companhia de Jesus permitia que se falasse nas reduções.
Vários livros tiveram que ser copiados à mão nos aldeamentos. Segundo uma testemunha da época, os índios “conseguem com sua pena imitar tão bem a melhor letra (,) que copiam um missal impresso em Antuérpia, com tal perfeição, que é necessária muita advertência para distinguir qual dos dois escreveu a mão do Índio”. Acrescenta que aos índios “parece uma bagatela imitar uma impressão de Colônia, Antuérpia ou Amsterdã com a pena. Faz poucos anos que se obsequiou a Sua Santidade com um missal inteiro, escrito por um índio, que causou surpresa no Vaticano…”
Livros impressos
Os jesuítas das missões não chegaram a receber o irmão tipógrafo nem a tipografia que durante décadas solicitaram com tanta insistência. Mas conseguiram uma licença do vice-rei do Peru para construir um prelo.
Finalmente, em 1695, por iniciativa dos padres Juan Bautista Neumann, natural da Boêmia, e do andaluz José Serrano, os jesuítas já tinham sua tipografia. Nesse ano, Neumann informava que os índios das missões tinham construído um prelo utilizando madeiras duras da floresta, e que fundiram tipos de estanho para a composição do texto. Também instalaram fornos para a fundição de ferro a partir da pedra “itacuru”, uma hematita com teor de ferro de 60%. A tinta para a impressão era feita a partir da madeira conhecida como “tapy”: as cinzas eram colocadas num recipiente no qual se vertia água quente e se misturavam com borracha e açúcar; a tinta assim fabricada “não era inferior à europeia”, segundo outro padre.
O maior problema estava no papel, pois fabricá-lo resultava ser “de tudo impossível” e era necessário “trazê-lo da Europa, o que resulta muito caro”, segundo escreveria em 1709 o jesuíta austríaco Antonio Sepp. Em 1725, o padre Streicher afirmava que “agora pensamos seriamente em montar uma fábrica de papel e outra de vidro”, mas essas fábricas nunca foram instaladas.
No entanto, e apesar de todas as dificuldades, os índios guaranis das missões, orientados pelos jesuítas, tinham construído a primeira tipografia feita no Novo Mundo; segundo o argentino Bartolomé Mitre, “é um caso singular na história da tipografia depois do invento de Gutenberg”. Todavia, permaneceu desconhecida no Brasil durante muito tempo. Mais de um século depois de construído o prelo das missões, quando na Impressão Régia foi fabricada em 1809 uma prensa de madeira, copiando um equipamento comprado na Inglaterra, uma placa dizia: “À imortalidade do real e sempre augusto nome do Príncipe Regente Nosso Senhor é dedicada a estréia do primeiro prelo construído na América do Sul, no Rio de Janeiro, no ano de MDCCCIX”.
A “Imprenta de Doctrinas”, como era conhecida a tipografia, foi instalada inicialmente na redução jesuítica de Santa María de Loreto. Mas certamente foi uma prensa itinerante, transportada a diversos aldeamentos guaranis, pois foram impressas obras em vários deles. A pesquisadora brasileira Fernanda Veríssimo – filha de Luís Fernando e neta de Érico – disse em entrevistas a Valéria Gauz e à Brasiliana USP que não se sabe ao certo se havia nas missões mais de uma prensa. No entanto, segundo o padre jesuíta argentino Guillermo Furlong Cardiff, os guaranis tinham condições de fazer vários prelos, mas não os fizeram porque receberam licença para construir apenas “una imprenta”. É provável, porém, que várias reduções contassem com tipos para compor as obras a serem impressas quando chegasse o prelo itinerante.
A prensa começou a funcionar provavelmente em 1700 e imprimiu obras até 1727, quando parou, possivelmente, pela dificuldade de se encontrar papel. Ou pela proibição de estampar livros em guarani, que era seu principal objetivo.
Curiosamente, não há nenhuma menção ao prelo das missões nem aos livros nele estampados na obra de Alfredo de Carvalho. Mas vários autores afirmaram que o prelo das missões jesuíticas estava instalado no atual território brasileiro.
Uma das primeiras referências foi um ensaio publicado em 1900 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por A. da Cunha Barbosa, que menciona como fonte o artigo “A imprensa”, de Pires de Almeida, publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em maio de 1897. Cunha Barbosa diz “ter havido uma tipografia fundada pelos jesuítas nas antigas Missões Brasileiras”. Comete várias imprecisões ao dar o nome dos autores e dos livros impressos e acrescenta que parecem ter sido os primeiros trabalhos impressos no Brasil. Ele também afirma que o historiador gaúcho Alfredo Ferreira Rodrigues mencionou “a existência de uma tipografia nas missões brasileiras, montada pelos jesuítas e por eles conservada durante o seu domínio nessas localidades”. Isso confirma, segundo Cunha Barbosa, as informações de Pires de Almeida.
Carlos Rizzini escreve: “Data aproximadamente de 1700 o uso da tipografia nas reduções indígenas da margem esquerda do rio Paraná, em território brasileiro, ao tempo ocupado por jesuítas espanhóis”. O professor José Marques de Melo, em História Social da Imprensa, diz que os inacianos fizeram funcionar nas reduções do Paraná, em 1700, uma tipografia construída pelos próprios indígenas, orientados pelos padres. Acrescenta que “a população indígena era de razoável nível cultural”.
Laurence Hallewell afirma que dois livros foram “impressos em 1722 e 1724 pelos missionários jesuítas em Pueblo de Santa María la Mayor, um lugar hoje situado em território brasileiro, mas na época pertencente ao Paraguai”. Ele enfatiza ainda que “esses dois primeiros livros não só foram impressos numa região que somente agora faz parte do Brasil, como também foram produzidos por uma tipografia missionária espanhola”. Hallewell, como Cunha Barbosa um século antes, se atrapalha com o nome dos autores dos livros.
Resposta em aberto
A questão fundamental é que, independentemente das confusões em torno aos nomes, todos esses escritores asseguram que a tipografia dos jesuítas estava instalada e funcionava em território que hoje é brasileiro. Nenhum deles apresenta qualquer evidência. Não há dúvidas de que tipografia realmente existiu, mas não há provas de que, ao contrário do que afirmam, estivesse instalada no Brasil.
No começo do século XVII, as reduções jesuíticas se estendiam pelo Sul do país. A maioria estava localizada na província de Guayrá (“país dos guaranis”, hoje no atual Estado do Paraná), às margens do rio Paranapanema, onde viviam de 70 mil a 100 mil pessoas. Entre elas, as reduções de San Ignacio del Pirapó, Nuestra Señora de Loreto de Paranapanema, San Francisco Javier de Tayatí, San Miguel de Ybyturuzú, Encarnación de Nautinguí, Santa María la Mayor. Estavam subordinadas hierarquicamente a Madri e a Roma.
Entre 1628 e 1633, os bandeirantes e mamelucos de Raposo Tavares, procedentes de São Paulo, atacaram as missões para escravizar os guaranis, com a conivência do governador espanhol de Assunção. Era mais fácil capturar os índios, já agrupados nos aldeamentos, do que caçá-los na selva. Aprisionaram ou mataram um grande número deles. Os sobreviventes abandonaram a região de Guayrá, desceram o rio Paraná em canoas e jangadas e se estabeleceram, para fugir dos ataques, entre os rios Uruguai e Paraná, no atual território argentino. Esta “longa marcha” de 800 quilômetros dos guaranis, que os levou ao êxodo, foi planejada pelo padre Antonio Ruiz de Montoya, o “Pai Guaçu” autor da gramática e do dicionário da língua guarani.
O historiador A. de Toledo Piza diz que uns 20 mil índios teriam sido mortos nos ataques dos bandeirantes, 60 mil foram feitos prisioneiros e vendidos no mercado de escravos de São Paulo, e 20 mil teriam conseguido fugir rumo ao Sul. Outros escritores, como Lacouture, dão números mais modestos, mas ainda assim elevados.
Os fugitivos construíram novas reduções na região mesopotâmica, entre o Alto Uruguai e o Alto Paraná, que batizaram com os mesmos nomes dos antigos aldeamentos de Guayrá: San Francisco Javier, Nuestra Señora de Loreto, San Ignacio, Santa María la Mayor. Algumas reduções foram destruídas novamente pelos mamelucos e tiveram que ser construídas pela terceira vez, como San Ignacio Mini (“pequeno”, em comparação com o aldeamento original, “Guaçu”, grande). A maioria estava na região argentina que hoje é Entre Ríos e Misiones. No Brasil, foram formados os Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. Nos novos assentamentos, os guaranis derrotaram os mamelucos em 1741 e, no fim do século, construíram a primeira tipografia feita na América. Nas diferentes reduções, as bibliotecas dos jesuítas chegaram a reunir mais de 56 mil obras.
Hallewell afirma que não se sabe com precisão onde foi instalado o prelo, mas que é certo que se mudou de uma missão jesuíta para outra; acrescenta que esses locais ficaram provavelmente no território que mais tarde foi incorporado à Argentina ou ao Brasil. Esta última afirmação é duvidosa. Embora o prelo fosse itinerante, não há nenhuma prova de que tivesse funcionado em território brasileiro. E, ao contrário do que ele escreve, não parece correto afirmar que Santa María la Mayor pertenceu um dia ao Paraguai e agora é do Brasil. É certo que uma redução com esse nome esteve localizada no Brasil, em Guayrá, no atual Estado do Paraná, mas foi transferida para a região que é hoje a província argentina de Misiones, na margem ocidental do rio Uruguai, numa área próxima à divisa com o Brasil. Mas não no Brasil.
E, ao contrário do que afirmam Rizzini e Marques de Melo, não poderia haver uma tipografia nas reduções jesuítas do Paraná em 1700: sete décadas antes dessa data, as reduções dos jesuítas no Paraná tinham sido destruídas pelos bandeirantes ou abandonadas pelos seus moradores, que fugiram rumo ao Sul.
A historiografia brasileira a respeito da tipografia das missões, ao contrário da argentina, é extremamente pobre. Ignora-se, por exemplo, se o trabalho de Alfredo Ferreira Rodrigues sobre a existência de uma tipografia nas reduções do Rio Grande do Sul foi concluído ou se teve continuidade.
Entre os pesquisadores brasileiros mais recentes, além de Fernanda Veríssimo está o professor gaúcho Eduardo Santos Neumann, considerado uma referência em trabalhos sobre a produção de impressos e manuscritos por indígenas nas missões. Consultado, escreveu que nunca encontrou qualquer referência mencionando a existência de uma tipografia nas reduções orientais do Uruguai.
Ainda falta responder à questão levantada por Alfredo de Carvalho e Borba de Mores: se a Companhia de Jesus, que instalou tipografias nas colônias portuguesas da Ásia e da África, não teria implantado uma ou várias também no Brasil. Até agora, a resposta é negativa, mas não necessariamente definitiva.
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo]