Bem que o título deste artigo poderia ser “600 contra 3 mil”. Mas para não ficar somente no campo numerológico-estatístico nebuloso, prefiro trazer os tais números como dados para o debate, e não como verdade absoluta. Em especial, vamos discutir uma questão de grande importância, que é o fato de que a mídia tenta se passar por instância política legítima, amparada em “pesquisas de opinião” que os seus leitores não sabem como são feitas.
No domingo (13/11), a manchete da Folha de S.Paulo apresenta o resultado de uma pesquisa feita por seu instituto de pesquisa, o Datafolha. Segundo a pesquisa, 58% dos estudantes da Universidade de São Paulo são a favor da presença da polícia militar na universidade.
O primeiro problema é que a matéria oferece os números, mas não revela sob que condições obteve as respostas dos entrevistados. Na quarta-feira (9/11), haviam vários fiscais em inúmeras unidades da USP. Nesse dia, uma amiga que estava em intervalo de aula foi abordada por um dos pesquisadores e saiu indignada, recusando-se a continuar a responder à pesquisa. O motivo da recusa é que o questionário trazia questões no mínimo tendenciosas. Melhor seria dizer mal-intencionadas. Uma das perguntas dizia algo como “Você é contra ou a favor a prisão de estudantes maconheiros?”
O modelo de pesquisa feita é o que chamamos de questionário fechado. Nesse tipo de questionário, o entrevistado não pode responder livremente às perguntas, fazer comentários ou expressar opiniões diversas. Nesse tipo de questionário, você só pode escolher entre as respostas já prontas, escolhidas por quem faz a pesquisa. E quando as questões tratadas são recheadas de divergências políticas, as pesquisas desse tipo mais confundem do que explicam.
Escolhas políticas
Se pegarmos os números apresentados, identificamos outro problema. A pesquisa foi realizada com 683 entrevistados e, segundo cálculos dos pesquisadores, com uma margem de erro de 4%. Considerando que os favoráveis à PM no campus somam 58%, chegamos a um total de 396 estudantes. Segundo a matéria, isso representaria a vontade da maioria, coisa que chamamos de um ponto de vista “fabricado”. Eis um problema: na última assembleia-geral dos estudantes da USP, com aproximadamente 3 mil estudantes presentes, todos opinaram contra a PM no campus da universidade. Só aí, temos quase oito vezes mais estudantes contra do que aqueles que são favoráveis.
Com todas as discussões vazias que podem ser feitas para concordar ou não com essa comparação de valores que acabo de fazer, a questão mais grave ainda não foi colocada. E é a seguinte: fazendo de sua “pesquisa de opinião” um instrumento da verdade incontestável, a Folha não está somente fabricando um determinado ponto de vista. Está subvertendo o espaço da política, que acontece nas reuniões e assembleias onde todos os presentes podem se expressar da maneira como quiserem, além de votarem naquelas ideias que consideram mais acertadas.
O que a Folha faz, com essa “pesquisa”, não é dar voz aos estudantes. É exatamente o contrário. Ela remove a política do seu espaço legítimo e reapresenta essa política em seus veículos de informação transformando seu jornal impresso, seu site etc. em uma instância política. Funciona como se as decisões dos estudantes só tivessem validade se a Folha lhes der esse aval.
Não é preciso ensinar o beabá, mas é preciso lembrá-lo quando tentam escondê-lo. A Folha não tem legitimidade alguma como “voz” dos estudantes, nem da política. Não bastasse a deslealdade com que trata das reivindicações dos estudantes, agora a Folha tenta tomar de assalto o poder desses estudantes de se expressarem e decidirem sobre suas escolhas políticas. Aos que se fazem de desentendidos, vale o reforço: informar sobre política não é o mesmo que falar em nome dela.
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[Júlio Arantes é jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação, São Paulo, SP]