O que de fato aconteceu por estes dias? Para responder a esta pergunta, é preciso primeiro externar, sem complacência, o quão estarrecedor é perceber o teor predominante da informação à qual a população de todo o país tem tido acesso. Quem se dá ao trabalho de “navegar” por aí, e fugir, por pouco que seja, do noticiário do mainstream, vai perceber de fato uma profusão de visões profundamente dissonantes daquela que é bombardeada incessantemente pela mídia corporativa. O que a maioria saberá sobre os acontecimentos, e que poderá ser introjetado pela memória coletiva, é a versão gravada e ventilada através dos grandes veículos de comunicação.
Mais uma vez, a USP, a maior e mais famosa universidade do país, se vê às voltas com a polícia. Verdadeira operação de guerra, com tropa de choque, cavalaria, bombas, estilhaços, sobrevoo de helicópteros. Mais de 400 homens para retirar cerca de 70 estudantes que tinham ocupado a reitoria, em uma manifestação de protesto contra a presença da PM no campus da universidade.
Nem é preciso gastar tempo com semanários à la Veja e assemelhados, cujo sensacionalismo associado a um raciocínio tacanho e primário já está por demais manjado e desmascarado por todos que pensam em jornalismo com um mínimo de respeito e seriedade. Basta olhar para a Folha de S.Paulo, afinal, o órgão de mídia impressa mais lido no país, como faz sempre questão de anunciar em suas páginas, gabando-se com frequência de tal façanha e de sua pretensa isenção e progressismo.
Uma certa confusão temporal
Editorial da sexta-feira, 4 de novembro, antes portanto da ação da PM na reitoria, é notório em sua visão monocórdia a defender, quase exaltar, a presença da PM no campus. Os estudantes que ocuparam a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) são tidos como “grupelhos situados na mais extrema franja da esquerda”. O citado editorial, este mesmo que utiliza as expressões “grupelhos” e “extrema franja da esquerda”, critica ainda um tal “excesso de susceptibilidade ideológica” por parte daqueles que ainda associariam a presença da PM no campus com traumas advindos da ditadura. Com este vocabulário, é o caso de questionar de quem seria realmente o tal excesso de susceptibilidade ideológica.
Conclui, finalmente, o editorial que “quem agride a democracia, o ensino e a pesquisa na USP é a paranoica minoria que invadiu a reitoria, no intuito de provocar um confronto que só atende às suas pueris fantasias de contestação”. São muitos, além de bastante reconhecidos, os intelectuais e estudiosos que poderiam contribuir para enriquecer este olhar enviesado sobre a realidade uspiana. Estivessem os editorialistas realmente preocupados com o princípio da isenção que tanto pregam, estariam com os ouvidos mais atentos para as diversas facetas que conformam a complexa situação hoje vivida pela universidade.
E não para por aí o diário dos Frias. Na segunda feira (7/11), uma tropa de choque jornalística antecedeu a tropa de choque da PM que atuaria na USP na madrugada de terça. Para ficar em alguns casos mais exemplares, o colunista Vinícius Mota carrega no verbo ao questionar “grupelhos semi-alfabetizados e violentos que impõem a sua agenda sem encontrar resistência à altura” na FFLCH, desqualificando sem piedade o desempenho da faculdade nos dias de hoje. Acusa-a de se deixar encantar “por um bordão do passado, mera forma sem conteúdo, quando clama pela saída da PM do campus”. No entanto, são as próprias linhas traçadas por Mota, com sua virulência patente, que causam uma certa confusão temporal: estariam mesmo sendo escritas na atual e tão aclamada “democracia”?
Um espaço de discussões rasteiras e apelativas
Outro colunista que, neste mesmo dia 7 de novembro, escreve sobre os episódios uspianos é o colaborador semanal das segundas-feiras, o filósofo Luiz Felipe Pondé. Entrar em algum tipo de discussão mais pormenorizada e edificante sobre o episódio que se desenrolou na USP esteve bem longe do espectro de preocupação do filósofo. Os “baderneiros” – como foram cunhados os estudantes da FFLCH – são nada mais do que parte daquilo que o filósofo toma como um “partido mundial de jovens”, abraçados pela “mídia ideológica, cansada do marasmo desde maio de 1968 (aquela “revolução francesa” dos estudantes entediados que acabou numa noite gostosa de queijos e vinhos)”.
Last but not least, a Folha não se fez de rogada após consumada a invasão policial na madrugada de terça-feira, 8 de novembro. Até algum tempo atrás, provavelmente estaria mais antenada em cravar uma no ferro e outra na ferradura, em função das cenas truculentas protagonizadas pela polícia de São Paulo que foram mostradas a todo o país. Entretanto, manchetes e matérias da quarta-feira (9/11) não evidenciaram a menor preocupação com uma cobertura que tivesse o mínimo de isenção.
Desde a capa do diário até as páginas internas, os estudantes foram exaustivamente chamados de invasores, baderneiros e pichadores, com imagens selecionadas a dedo de forma a corroborar esta visão. Não é, ademais, gratuito que o caderno a fazer a cobertura dos episódios tenha sido o de Cotidiano. Esse caderno, que no passado já foi denominado de Cidades, há tempos vem se tornando um espaço de discussões gerais, rasteiras e apelativas, sem se aprofundar no tratamento da cidade a partir de um enfoque urbanístico e social mais elaborado.
Redes sociais contribuem para a visibilidade de uma versão
E se estamos no âmbito dos grandes veículos, tome-se ainda a exploração dos fatos aqui narrados pela mídia televisiva de maior porte no país. A Rede Globo de Televisão, em uma de suas apresentações mais imediatas após a ocupação da reitoria (o Bom Dia Brasil de 8 de novembro), teve desempenho emblemático. Não se absteve de explorar as fortes imagens dos policiais que cercaram a USP, afinal um prato cheio para a audiência. Quem se ateve à observação destas imagens, com a concomitante narração dos fatos pelos repórteres que os acompanhavam in loco, não teria dúvidas de que se estava diante de um cenário de dura repressão policial. Mais ao final da reportagem, porém, viria a fala que não quer calar – aquela que, no intuito de parecer ocupar um lugar inadvertido, é a que realmente ecoa o pensamento da emissora global.
A jornalista Renata Vasconcelos, uma das locutoras da reportagem juntamente com Chico Pinheiro, soltou finalmente as trivialidades que não mais surpreendem aqueles mais antenados com as entrelinhas da mídia corporativa. A jornalista enfatizou, indignada, que a reitoria teria sido invadida “por causa de três estudantes que foram detidos porque estavam de posse de maconha”. E encerrou a reportagem com sutil torcida para que, se comprovado o vandalismo, os alunos sejam responsabilizados!
“Acreditar que alunos de uma das faculdades mais importantes do país se mobilizaram numa ação que ganhou tamanha proporção por desejarem usufruir do direito ainda ilegal de fazer uso de maconha dentro do campus me parecia inconcebível.” Assim se expressou uma aluna em um grupo de discussão de uma das muitas redes sociais que estão contribuindo para a visibilidade de uma versão que não encontra a mais mínima guarida nos veículos de maior circulação. “Antigamente, o melhor aliado das manifestações sociais era a imprensa, agora é a internet, tudo tem que ir parar no YouTube”, avalia um outro aluno diante dos episódios.
Fóruns de discussão foram sendo esvaziados
Um estudante, talvez com a forte sensação de impotência decorrente da impossibilidade de ter voz, chegou até mesmo a fazer uma auto-entrevista e a divulgá-la pela rede, desbancando com muita sensatez os sensos comuns que estão imperando. Dentre as perguntas que redigiu, uma se referia à presença da PM no campus, um dos pontos mais polêmicos na discussão em pauta. À afirmativa de que a PM deveria, sim, estar presente no campus como meio fundamental na manutenção da ordem, o estudante avalia que “PM não traz segurança nem fora do campus. Se PM é segurança, para que empresas de segurança privadas fazendo ronda em bairros chiques? Para que seguranças particulares, cercas, alarmes, grades, carros blindados? Isso tudo em áreas policiadas. Além disso, a PM de São Paulo mata mais que todas as polícias dos EUA juntas. Muitas áreas têm menos problemas com segurança, mas são sempre bem iluminadas e cheias de gente – esse é o ponto. Alunos e professores já manifestaram soluções alternativas, como iluminação massiva e eficiente de todo o campus. O rapaz que morreu na FEA resistiu a um assalto e foi, sim, assassinado no campus. Mas, nota importantíssima: havia PM trabalhando dentro da USP naquele dia. De nada adiantou. Levar a PM em ações ostensivas por conta de furtos e roubos não faz sentido, ainda mais podendo evitá-los com uma guarda universitária concursada, com plano de carreira, treinada, em grande número, com ala feminina treinada para lidar com casos de abuso sexual e estupro”.
O estudante conclui sua resposta narrando que “a ação da PM está afinada com as ações políticas do reitor João Rodas em seu processo de privatização da Universidade. Não é lenda, não é mania de perseguição, não é inventado. Lutamos contra algo real aqui. Propostas de fechamento de cursos que não dão lucro, abertura de cursos pagos usando a infraestrutura e os docentes da USP, tudo isso faz parte da privatização gradual – que também se manifesta nas terceirizações (que, aliás, no caso da guarda universitária, colabora com os sumiços de celulares, laptops etc.)”.
Dezenas de estudantes, professores e intelectuais que, notoriamente ignorados nos noticiários de maior visibilidade, há anos avaliam temas essenciais afeitos à política universitária. Com o sentido de reorganizar a universidade como campo efetivo de participação e decisão política, estes estudiosos vêm ressaltando que a direção e gestão dos processos decisórios na USP têm se mostrado incapazes de representar os segmentos diversos que compõem a universidade e de lidar com a profusão de conflitos e movimentos sociais e políticos que emergem em seu seio. E isso não é de hoje. Conselho universitário, associações e distintos fóruns de discussão foram sendo esvaziados nos últimos anos, com o estreitamento e a centralização das instâncias de decisão. O governo do estado, por sua vez, dominado há mais de 20 anos pelo tucanato, jamais demonstrou sequer entender o que seja o conceito de autonomia universitária.
“Não é uma minoria que se indigna na USP”
Por que a resposta policial se tornou a forma natural de reação? É a pergunta que já se fazia a filósofa Marilena Chauí em ato contra a presença da PM na USP em 16 de junho de 2009, no anfiteatro da Geografia, na FFLCH, com presença de Antônio Cândido e de Maria Victoria Benevides. A resposta a esta pergunta está diretamente associada à falta de fóruns de discussão e debate, que faz com que, a cada manifestação de oposição, exigência e reivindicação, a única reação que se conheça seja aquela que “vem de cima”.
A prisão dos mais de 70 alunos que ocuparam a reitoria em ato de manifestação política – prisão que se deu em moldes bem distintos daqueles apregoados pelos veículos de comunicação dominantes, segundo relato de dezenas de estudantes – é um ataque frontal à liberdade nesta que se chama democracia representativa. Novamente, “governo do estado e reitoria entraram no jogo da radicalização, da violência e do acirramento do conflito, sem esforço de construção de uma estratégia política menos tosca, que efetivamente expressasse a vontade das maiorias, que não foram consultadas”, destaca a urbanista e professora da USP Raquel Rolnik em seu blogno dia 10 de novembro.
Uma Comissão da Verdade que de verdadeira tem quase nada. Um deputado carioca que precisa sair do país para proteger sua vida, após bulir com os interesses de poderosos milicianos do Rio. Tropa de choque da Polícia Militar na USP, prontamente seguida pela tropa de choque midiática. Tempos sombrios estes que vivemos, em plena primavera nos trópicos!
Com a palavra final, um estudante: “Ontem (10/11), no centro de São Paulo éramos mais de 5000 demonstrando que não é uma minoria que se indigna na USP. Mas onde estavam as câmeras e agentes da TV que não filmaram tudo ali? A grande mídia ordena o pensamento assim como o governador ordena à polícia invasões de favelas, massacres do Carandiru e invasões policiais no campus da USP. Disciplinam sua mente, brutalizam e ganham muito dinheiro e poder com isso…”
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[Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania]