Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Não é por acaso que a demar­ca­ção rigo­rosa entre infor­ma­ção e publi­ci­dade, e entre espaço infor­ma­tivo e espaço publi­ci­tá­rio, é uma marca irre­nun­ciá­vel da imprensa de qua­li­dade. Um jor­nal redi­gido e edi­tado fora de ‘qual­quer depen­dên­cia de ordem ide­o­ló­gica, polí­tica e eco­nó­mica’ — como o PÚBLICO se define no seu esta­tuto edi­to­rial — não pode per­mi­tir que se ins­tale qual­quer con­fu­são ou sus­peita de con­ta­mi­na­ção entre a infor­ma­ção que pro­duz e os inte­res­ses comer­ci­ais da empresa que o edita.

É num período como o que atra­ves­sa­mos, de enor­mes difi­cul­da­des finan­cei­ras para as empre­sas jor­na­lís­ti­cas, afec­ta­das pela cres­cente insu­fi­ci­ên­cia das recei­tas publi­ci­tá­rias de que depende a sua pró­pria sobre­vi­vên­cia, que mais deci­sivo se torna zelar pela cla­reza desta demar­ca­ção — que é uma garan­tia de inde­pen­dên­cia, uma con­di­ção de cre­di­bi­li­dade e um impe­ra­tivo de leal­dade para com os leitores.

É em nome des­ses valo­res que importa resis­tir à cres­cente pres­são de mui­tos anun­ci­an­tes ou agen­tes publi­ci­tá­rios que pro­cu­ram por todos os meios, mais clás­si­cos ou mais cri­a­ti­vos, esba­ter os tra­ços da fron­teira entre a infor­ma­ção e a pro­pa­ganda comer­cial. Fazem-no com o intuito de ampliar o alcance das suas men­sa­gens, que jul­gam tor­nar mais cre­dí­veis num con­texto de alguma ambi­gui­dade ou per­me­a­bi­li­dade entre infor­ma­ção e publi­ci­dade, bene­fi­ci­ando da cre­di­bi­li­dade do órgão infor­ma­tivo que lhes serve de veículo.

É uma estra­té­gia que pro­por­ci­o­nará algum sucesso ime­di­ato, mas que com­porta ris­cos a prazo para quem a pro­move. Por um lado, irrita mui­tos lei­to­res, como mos­tram as quei­xas que recebo acerca de tex­tos supos­ta­mente influ­en­ci­a­dos por um qual­quer inte­resse comer­cial, que na maior parte serão injus­ti­fi­ca­das, mas indi­ciam uma sau­dá­vel sus­cep­ti­bi­li­dade neste domí­nio. E arrisca-se, por outro lado, a voltar-se con­tra si pró­pria, se um órgão infor­ma­tivo que aceite ultra­pas­sar os seus limi­tes esta­tu­tá­rios em rela­ção à publi­ci­dade vir por isso ine­vi­ta­vel­mente dani­fi­cada a sua pró­pria credibilidade.

Não são, no entanto, as estra­té­gias publi­ci­tá­rias o que aqui me cabe comen­tar, mas as opções edi­to­ri­ais e o ser­viço aos lei­to­res, no âmbito dos com­pro­mis­sos que o PÚBLICO com eles livre­mente esta­be­le­ceu e que se encon­tram ins­cri­tos no Livro de Estilo do jor­nal. Nesse qua­dro nor­ma­tivo, que é no geral comum a toda a imprensa de qua­li­dade, a sepa­ra­ção entre espaço noti­ci­oso e publi­ci­dade garante-se, em pri­meiro lugar, nos pró­prios tex­tos infor­ma­ti­vos. Neste plano importa acau­te­lar tanto regras como apa­rên­cias, face a alguns pro­ce­di­men­tos que têm vindo a tornar-se comuns no con­texto de maior debi­li­dade finan­ceira das empre­sas jor­na­lís­ti­cas. É o caso — entre outros que mere­cem refle­xão — das notí­cias ou repor­ta­gens liga­das à apre­sen­ta­ção ou divul­ga­ção de pro­du­tos comer­ci­ais (fre­quen­te­mente inte­gra­das em cam­pa­nhas publi­ci­tá­rias não cla­ra­mente assu­mi­das como tais), em que as des­pe­sas asso­ci­a­das à des­lo­ca­ção de jor­na­lis­tas são pagas pelos agen­tes eco­nó­mi­cos direc­ta­mente inte­res­sa­dos. Como já defendi neste espaço, não basta que o PÚBLICO anun­cie com trans­pa­rên­cia (como o faz) que essas via­gens são pagas por ter­cei­ros: a acei­ta­ção des­ses con­vi­tes só é jus­ti­fi­cá­vel quando o seu objecto se enqua­dra com cla­reza na agenda infor­ma­tiva do jor­nal, de acordo com os cri­té­rios de rele­vân­cia e opor­tu­ni­dade que devem guiar a ocu­pa­ção de um espaço edi­to­rial que é escasso e deve ser gerido sem con­di­ci­o­na­men­tos estra­nhos ao jornalismo.

A demar­ca­ção entre infor­ma­ção e publi­ci­dade deve ainda exprimir-se no plano grá­fico, de um modo que poderá ser visto como sim­bó­lico, mas que é inse­pa­rá­vel da dig­ni­dade do pró­prio jor­nal e da nobreza da sua mis­são infor­ma­tiva. O Livro de Estilo do PÚBLICO prevê um con­junto de regras, entre as quais a de que todo o mate­rial publi­ci­tá­rio deve ser ‘assi­na­lado de forma clara e explí­cita, que evite con­fu­sões ou asso­ci­a­ções ambí­guas à man­cha infor­ma­tiva’. E, em defesa da dig­ni­dade do espaço infor­ma­tivo, impõe várias res­tri­ções espe­cí­fi­cas à pagi­na­ção de publi­ci­dade, como a que esta­be­lece que ‘a pri­meira e última pági­nas (…) só pode­rão incluir man­chas publi­ci­tá­rias de canto ou rodapé, salvo cir­cuns­tân­cias ou con­tra­tos especiais’.

À luz des­tes prin­cí­pios, parece no mínimo dis­cu­tí­vel que se tenha ocu­pado a área cen­tral da capa da edi­ção do pas­sado dia 31 de Outu­bro com um anún­cio a toda a lar­gura da página, que à pri­meira vista se con­funde facil­mente com um tipo de man­chete (ou segunda man­chete) com título sobre fundo foto­grá­fico que é comum no modelo grá­fico do PÚBLICO. Nele se lia ape­nas, junto aos ros­tos de três acto­res foto­gra­fa­dos: ‘Hoje, às 19:55, a nossa troika vai falar em directo aos por­tu­gue­ses’. Quem viu a edi­ção seguinte terá com­pre­en­dido que se tra­tava um ‘ape­ri­tivo’ da cam­pa­nha publi­ci­tá­ria de uma enti­dade ban­cá­ria, que viria a ater­rar em força no PÚBLICO de 1 de Novem­bro. Supo­nho que as refe­rên­cias a ‘hoje, às 19:55″ e a ‘falar em directo’ pre­ten­de­riam reme­ter para o lan­ça­mento da cam­pa­nha em for­mato tele­vi­sivo nesse mesmo dia 31.

Dando por certo que se tra­tou de um ‘con­trato espe­cial’, já não se afi­gura nada evi­dente que o dito anún­cio tenha sido assi­na­lado ‘de forma clara e explí­cita’ e evi­tando ‘asso­ci­a­ções ambí­guas à man­cha infor­ma­tiva’. Não exis­tindo qual­quer refe­rên­cia à iden­ti­dade do anun­ci­ante (o que está longe de ser ‘claro e explí­cito’), a enig­má­tica refe­rên­cia à ‘nossa troika’ leva­ria a supor, numa pri­meira impres­são, que se tra­tava de uma ini­ci­a­tiva do PÚBLICO. Não espan­ta­ria que alguns lei­to­res tenham folhe­ado o jor­nal à pro­cura de uma his­tó­ria ine­xis­tente, tomando por lapso a ausên­cia de remis­são para uma página inte­rior nesta ‘cha­mada de capa’, antes de des­co­bri­rem a canó­nica e minús­cula sina­li­za­ção de ‘publi­ci­dade’ sobre o canto supe­rior direito do que lhes terá pare­cido uma nor­mal cha­mada de pri­meira página. Se depois disso se sen­ti­ram intri­ga­dos e inte­res­sa­dos em per­ce­ber que men­sa­gem ‘aos por­tu­gue­ses’ seria afi­nal aquela, a ideia publi­ci­tá­ria terá resul­tado em pleno. À custa, na minha opi­nião, das boas prá­ti­cas de demar­ca­ção entre infor­ma­ção e publicidade.

A direc­tora do jor­nal, Bár­bara Reis, não pensa assim. Reco­nhece que o anún­cio, ‘sobre­tudo por causa do seu tama­nho’, não bene­fi­cia a capa e que ‘rouba espaço pre­ci­oso à infor­ma­ção’. ‘Mas ambí­guo não é’ — sus­tenta, argu­men­tando que os ros­tos que mos­tra são os de ‘três dos mais famo­sos acto­res do país’ e que a cam­pa­nha estava ‘dis­se­mi­nada nas tele­vi­sões e ruas das cidades’.

Na edi­ção de 1 de Novem­bro, esta cam­pa­nha ban­cá­ria envol­via total­mente o PÚBLICO, tal como outros jor­nais, numa sobre­capa intei­ra­mente publi­ci­tá­ria, com o logó­tipo do jor­nal a juntar-se ao do anun­ci­ante den­tro do pró­prio anún­cio, o que tam­bém é ques­ti­o­ná­vel, embora acabe por ser a única forma de, nas ban­cas, se dis­tin­guir este dos outros jor­nais embru­lha­dos na mesma ima­gem comercial.

A moda das ‘capas fal­sas’ já não é recente e é pre­ju­di­cial para a iden­ti­dade do jor­nal, que assim renun­cia a expor a sua pri­meira página. Quis saber se a direc­ção não teme que a bana­li­za­ção deste recurso publi­ci­tá­rio possa fazer do PÚBLICO um objecto indi­fe­ren­ci­ado nos locais de venda. Bár­bara Reis con­si­dera que ‘não há qual­quer bana­li­za­ção’ e adi­anta núme­ros: ‘Em 2011 [até ante­on­tem] publi­cá­mos sete ‘capas fal­sas’ (como a do dia 1) e sete ‘acções de capa’ como a do dia 31 (ou seja, anún­cios que não são as peque­nas ‘ore­lhas’ ou os roda­pés comuns). Num ano de crise severa, 14 excep­ções em 365 dias é uma pro­por­ção que con­si­de­ra­mos acei­tá­vel e, pre­ci­sa­mente por ser pequena, espe­ra­mos rece­ber a com­pre­en­são dos leitores’.

A direc­tora do PÚBLICO con­si­dera que, em maté­ria de publi­ci­dade, o Livro de Estilo do jor­nal ‘[se] man­tém actual em mui­tos aspec­tos’, e ‘segu­ra­mente (…) em rela­ção ao fun­da­men­tal’. Defende, no entanto, que em alguns pon­tos, o docu­mento ‘está des­fa­sado do actual momento de crise’, e refere espe­ci­fi­ca­mente o que prevê que ‘a direc­ção [se] reserva o direito de adiar, por moti­vos edi­to­ri­ais impre­vis­tos e excep­ci­o­nais, a inser­ção de publi­ci­dade’. ‘Qual é a direc­ção’ — comenta — ‘que, num jor­nal cujas recei­tas de publi­ci­dade caí­ram 23% nos últi­mos meses, toma­ria uma deci­são dessas?’.

Entendo, natu­ral­mente, o apelo de Bár­bara Reis à com­pre­en­são dos lei­to­res. O jor­na­lismo de qua­li­dade é caro e as recei­tas publi­ci­tá­rias são indis­pen­sá­veis. Supo­nho que mui­tos com­pra­do­res do PÚBLICO acei­ta­rão cer­tas con­ces­sões à pres­são publi­ci­tá­ria em nome da pre­ser­va­ção do pro­jecto edi­to­rial a que deram pre­fe­rên­cia. Na ver­dade, são raras as recla­ma­ções que me che­gam sobre este tema no que res­peita ao jor­nal impresso. É dife­rente no que toca à edi­ção on line, em rela­ção à qual abun­dam as quei­xas sobre o des­con­forto cau­sado por anún­cios mais intru­si­vos, que difi­cul­tam a lei­tura quando não é intui­tivo (e por vezes não é) o modo de os remover.

Mas penso, tam­bém, que o debate sobre os limi­tes que não devem ser ultra­pas­sa­dos na cedên­cia às pres­sões publi­ci­tá­rias — e a capa de 31 de Outu­bro está já, a meu ver, num ter­reno move­diço — não pode ser evi­tado. Em nome do res­peito que o jor­nal deve a si pró­prio e aos seus com­pra­do­res fiéis. E atrevo-me a fazer o meu pró­prio apelo, tal­vez irre­a­lista, à com­pre­en­são dos lei­to­res e à refle­xão dos deci­so­res do PÚBLICO. Em tempo de crise, com a imprensa de qua­li­dade gra­ve­mente ame­a­çada por difi­cul­da­des finan­cei­ras, não se jus­ti­fi­cará pedir um maior esforço de apoio a este jor­nal a todos os que não que­rem dis­pen­sar a sua lei­tura, nem ver bai­xar os seus padrões de exigência?”