O debate que surge pós-eleições, sobre a necessidade de analisar o papel da imprensa brasileira e de suas relações com o poder e com a sociedade, é uma discussão oportuna e que deveria ser permanente. Não como fórum para implantar amarras e censuras: assim como a sociedade analisa as questões de saúde, educação e segurança, dentre outros, a comunicação e o acesso à informação, enquanto bens sociais e direitos constitucionais, devem estar constantemente na pauta brasileira.
A questão tem como origem o dilema de que até que ponto a liberdade de imprensa não se transforma em liberdade de empresa – e passa a ser utilizada em benefício de interesses econômicos de grupos restritos, do que se convencionou chamar de elite. Tudo isso porque o jornalismo nos permite tratar de temas com ângulos e abordagens diferenciadas. Tomemos, por exemplo, o comportamento da imprensa francesa para com o governo do PT.
Por aqui, os principais jornais, de centro, de esquerda, de direita, todos concederam nos últimos quatro anos uma boa cobertura. A primeira eleição do presidente Lula foi manchete de primeira página na maioria dos jornais, mesmo nos pequenos diários locais do interior. Para os europeus, a chegada ao poder pelo voto democrático de um líder operário de esquerda era um feito inédito. Nos primeiros anos de governo, as atenções foram para os programas de combate à miséria, o Fome Zero, e o Brasil ganhou ainda mais simpatia quando se opôs à segunda guerra do Iraque. Lula acumulou dividendos em defender a solução diplomática, como fizeram Alemanha e França.
A imprensa francesa se mostra dividida com relação à nova política internacional brasileira. De um lado, elogia a autonomia face aos EUA e os esforços Sul-Sul; de outro, critica as ações do Itamaraty contra os subsídios agrícolas. A França tem uma forte base rural que só sobrevive graças aos incentivos fiscais. Após a Rodada de Hong Kong, onde o Brasil liderou o G-20, a representante francesa nas negociações chegou a afirmar à imprensa que o Brasil queria tudo, até ‘arrancar as calcinhas da França’. Mostrava o Brasil, como um verdadeiro macho latino, violentador dos pobres camponeses franceses. Nesses momentos, o Brasil é apresentado como uma superpotência sem direito a qualquer moleza.
Candidato único
O Ano Brasil na França, em 2005, de fato conseguiu inserir nosso país na agenda francesa. Brasileiros de todas as áreas do conhecimento, de todos os campos das artes, tiveram oportunidade de se apresentar país afora. Os números oficiais falam em quase 10 milhões de pessoas assistindo às feiras, exposições, shows etc. No campo comercial, foi possível encontrar perfumes brasileiros – em terra de Chanel – refrigerante de guaraná, brigadeiro, sandálias plásticas que nunca soltam as tiras e até sucos de frutas regionais. Sem falar na cachaça e na farinha de mandioca.
Nosso país, contudo, não conseguiu aproveitar esta maré verde-amarela. Os produtos nacionais logo desapareceram das gôndolas. E a mídia francesa mudou seu comportamento. As preocupações ambientais e as desigualdades sociais ganharam o espaço antes ocupado pela transformação política. Transposição do Rio São Francisco, avanço da fronteira agrícola sobre a Amazônia, desmatamento, situação precária dos povos indígenas, reforma agrária, violência urbana e infância pautam as matérias mais negativas. Note-se que esses temas não apresentavam Lula e o PT como responsáveis, mas sim como uma realidade estrutural brasileira.
Em 2005, os escândalos não tiveram destaque. A cobertura minimizou os mensalaleiros, sanguessugas, vampiros, enfim, toda a nossa fauna de corruptos. Ganhou espaço o Bolsa Família, o programa de agricultura familiar, as melhorias sociais verbalizadas pelos indicadores sociais do IBGE, oportunamente disponibilizados nas semanas que antecederam o primeiro pleito.
As eleições só apareceram nas páginas francesas três dias antes do pleito. Até então, os temas latino-americanos preferidos eram as rusgas entre os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e dos Estados Unidos, George Bush, el diablo. De uma maneira geral, o noticiário nem citava os candidatos dos demais partidos – todos eram agrupados sob a denominação ‘oposição’. A senadora Heloisa Helena (PSOL) foi quem ganhou um pouco mais de espaço: Le Monde fez com ela o que no jargão jornalístico francês é denominado de portrait. Um retrato da mulher, nordestina, cristã, chefe de família que se contrapôs ao que Paris considera ser o símbolo maior da esquerda latino-americana. Cristovam Buarque (PDT) e os demais candidatos sequer foram citados. É como tivesse sido uma eleição de um candidato só.
Progressos econômicos
No dia do primeiro turno, Gerraldô – como pronunciam os locutores de rádio e TV o prenome de Alckmin – não teve um tratamento editorial condizente com a segunda força política mais importante do país. Le Monde, Le Figaro, L’Humanité, Ouest-France, todos previram uma vitória de Lula em primeiro turno, à razão de 53%. O discurso comum entre esses jornais foi que se, de um lado, o governo Lula manteve uma política econômica conservadora, ao gosto do FMI e dos bancos, de outro ele adotou medidas sociais que permitiram uma redução da pobreza.
Le Figaro, de linha editorial conservadora, afirmou em letras garrafais que o ‘Brasil de Lula é menos pobre e mais estável’. Salientou a redução das desigualdades sociais com o Bolsa Família e cobrou melhorias no campo da infra-estrutura, afirmando que as estradas de ferro são precárias e que existe 1 milhão de quilômetros de estradas não pavimentadas, o que prejudica o comércio exterior. O Ouest-France, de linha católica, apresentou Alckmin como representante da ‘direita oligárquica’. Segundo a publicação, as denúncias sobre as ambulâncias não afetou o resultado da eleição, porque a corrupção no Brasil ‘seria um velho esporte nacional’.
Le Monde, mais liberal, reconheceu os progressos econômicos, principalmente quanto ao nível de emprego e de renda e à redução da dívida externa. Para o vespertino, Lula abandonou os dogmas da esquerda e assumiu o liberalismo. ‘Será isso uma crítica ou um elogio?’, perguntou o jornal, lembrando que os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro e que, ao lado do agronegócio, é necessário incentivar ainda mais a agricultura familiar como forma de reduzir a pobreza no campo.
Debate saudável
O noticiário do segundo turno foi mais frio. No mesmo dia, três outros países realizavam seus pleitos. A República Democrática do Congo, depois de 40 anos sem eleições, escolhia seu presidente. Na Bulgária também havia eleições. E a Sérvia submetia a plebiscito a nova Constituição que considera Kosovo parte inalienável do território sérvio – uma forma de impedir que a ONU picote ainda mais a antiga Iugoslávia. As emissoras de TV falaram pouco e só o rádio, cujo jornalismo é muito forte na França, noticiou o cotidiano da campanha. O vitória de 60% foi surpreendente, mesmo porque os franceses ficaram com poucas informações entre um turno e o outro.
Qual será, doravante, o comportamento editorial francês na cobertura de assuntos brasileiros? Com certeza os temas ambientais, a redução da pobreza e das desigualdades e a posição brasileira no tabuleiro internacional serão sempre manchetes. Devemos aproveitar a proposta de debate da função social da imprensa para incluir também uma análise da nossa imagem no exterior. O estereótipo de samba, futebol e violência deve dar lugar ao do respeito à liberdade religiosa, inexistência de terrorismo e até de cataclismos. Temas que, se potencializados, poderão favorecer em muito a economia do Brasil.
O debate sobre o papel da imprensa é saudável, mas deve analisar também a política estratégica de comunicação mundial que o Brasil desenvolve, se é que desenvolve alguma.
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Jornalista e documentarista, é pesquisador associado ao Núcleo de Estudos de Mídia e Política da UnB, doutorando em Ciências da Informação e Comunicação, no Centre de Recherches sur l