Em cartaz, o teatro na Rocinha. Enquanto se direcionam todos os holofotes para o palco chamado Rocinha, outras cenas, que não serão mostradas ao grande público, merecem algum espaço nesses canais alternativos, fora do eixo global. Há que se alertar! No momento em que se construiu todo um aparato cênico e espetacular, vindo tanto do Estado, com a presença de tanques da Marinha, Polícia Civil, polícia rodoviária, “caveirões”, entre outros, quanto do aparato midiático, com programas especiais, RJTV ao vivo direto da Rocinha, desviam-se do foco problemáticas mais profundas, mas com pouco apelo para os pontos de audiência.
O circo montado, agora os atores entram em cena, armados até os dentes, fazendo rasantes nos morros, fechando os acessos de carros e nas matas, entrando na casa dos moradores sem mandado (com pé na porta), tudo para enfrentar a temida força do crime organizado. Tudo para? Nenhum sinal de retaliação. Nenhum tiro sequer. Nenhuma manifestação de resistência – ainda que Ana Paula Padrão e o especialista Rodrigo Pimentel (nosso “capitão Nascimento”) tentassem procurar qualquer fogueira na favela como foco de uma possível ação criminosa financiada pelos malignos malfeitores, os senhores bandidos do tráfico. Os motivos para a não reação são conhecidos por qualquer morador da favela ou um carioca com senso crítico.
Na verdade, os motivos são conhecidos até pela própria organizadora do teatro, a família Marinho, financiadora dos filmes Tropa de Elite. O argumento central do filme faz referência ao encadeamento político-econômico que associa o Legislativo (vereadores, deputados estaduais e federais), o Executivo (os membros do governo com seu aparato repressivo e seus arreglos), os consumidores e, por último, os mais visados: os distribuidores. Em geral, filhos da classe trabalhadora, sem acesso a um mínimo de direitos que lhes apresentassem outros projetos de vida. Ou seja, a Rocinha de 2011, tal como a conhecemos, é resultado de décadas de um relacionamento harmonioso entre essas partes munindo-a de armas, drogas e muito poder – e não (somente) das crueldades do terrível Nem. Querem nos fazer crer que prendendo o Nem e expulsando o maldito crime organizado, há de reinar a paz entre as ruas e vielas da Rocinha, como se esse fosse o principal problema. Uma afronta à nossa inteligência.
Maquiavélico e impiedoso
Sob os holofotes internacionais, devido a Rio + 20, a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a cidade do Rio de Janeiro conta com uma poderosa, e cada vez mais agressiva, articulação do poder público dos três entes federativos na transformação urbanística e social da cidade, de maneira que possa sustentar e aprofundar uma imagem reconhecida nos padrões internacionais para a entrada do capital estrangeiro. E tem dado certo, do ponto de vista desta articulação. Nunca se viu tamanho interesse pela cidade, transformada recentemente em um grande canteiro de obras. Obras que têm beneficiado sobretudo as empreiteiras, deixando até mesmo a tradicional classe média de cabelo em pé com a especulação imobiliária.
Então, senhoras e senhores espectadores do teatro chamado Rocinha, ao produzir tamanho espetáculo, transmitido ao vivo e em cores, a Rede Globo e suas amigas ideológicas Record, Band, Rede TV e SBT matam uns seis coelhos com uma cajadada só. Agradam o capital internacional, que “pode ficar tranquilo ao trazer seus investimentos e lucrar na cidade” com as favelas “pacificadas”; protela o debate da legalização das drogas e sistema penitenciário; coloca pra longe a discussão do tráfico de armas, talvez mais lucrativo do que o próprio comércio de drogas; dá popularidade ao modelo das UPPs, que já tem sido questionado e denunciado por milhares de moradores; e, por fim, e talvez a morte do principal coelho, mistifica a responsabilidade do Estado, neste caso do governo Sérgio Cabral (com baixíssima popularidade), pela degradação da vida dos moradores da Rocinha e das favelas cariocas, criando midiaticamente um inimigo maquiavélico e impiedoso, com vida própria e autorreprodução, que será exterminado, e exibido em imagem HD pelo Jornal Nacional, pelo grande herói carioca: o próprio governo do estado. Um enredo perfeito. E fim de cena.
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[Téo Cordeiro é professor, Rio de Janeiro, RJ]