Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sinal “encorajador” da Al-Jazira em inglês

Estreou com um gol de placa a TV Al-Jazira em inglês. Sabatinado na emissora pelo decano dos entrevistadores britânicos, David Frost – aliás Sir David Frost – o primeiro-ministro Tony Blair acabou concordando com ele que os resultados da invasão do Iraque foram ‘bem desastrosos’.


Deu no que deu. Manchetes em profusão nos jornais da ilha, fuzilaria da oposição, fogo amigo trabalhista e a costumeira alegação oficial de que as palavras foram interpretadas fora do contexto.


Mas o que importa, a rigor, além da prova de que Frost, aos 67 anos, continua tão afiado como na década de 1970, quando produzia e apresentava na BBC o mordaz programa jornalístico semanal That was the week that was, é o esperado impacto da exposição do público ocidental, que pelo menos arranhe o inglês, à revolucionária emissora sediada no Catar.


Da Al-Jazira se pode dizer, parafraseando o moto deste Observatório de Imprensa, que depois do seu surgimento o mundo árabe-muçulmano nunca mais viu os fatos do mesmo jeito – principalmente os fatos que os autocratas da região gostariam de esconder debaixo dos seus opulentos tapetes.


A grande questão é se, quando e com quais resultados a emissora conseguirá mudar a percepção ocidental, não raro preconceituosa, sobre os islâmicos e os seus problemas. (Em tempo: nenhum provedor de TV a cabo nos Estados Unidos já incluiu a nova estação nos seus pacotes.)


Cobertura convincente


Domingo (19/11), os editores do caderno ‘Aliás,’ do Estado de S.Paulo tiveram a boa idéia de transcrever o artigo ‘De governanta a patroa’, com o subtítulo ‘A mídia se considerava supervisora do poder. Hoje possui mais cartuchos do que os líderes tradicionais’, do jornalista e historiador britânico Timothy Garton Ash, publicado originalmente no Guardian, de Londres.


Ash descreve a primeira hora de programação noticiosa da Al-Jazira English, na quarta-feira anterior, como prova da boa saúde dos valores que guiam os jornalistas que controlam ‘as armas extraordinariamente poderosas’, capazes de ser usadas ‘para o esclarecimento em massa, para o engano em massa ou para a excitação em massa’.


O poder de que ele fala, evidentemente, deriva do salto quântico no fluxo da informação em escala mundial, proporcionado pela mudança tecnológica que trouxe o computador e os satélites de comunicação, sem os quais a internet não existiria.


‘Ficou claro faz tempo, pela qualidade dos jornalistas que a Al-Jazira rouba da BBC, ITN, CNN, Sky, Reuters e outras’, lembra Ash, ‘que a rede pretende derrotar a mídia noticiosa ocidental com suas próprias armas.’


Na prática, ele verificou, pela escolha, ordenação e tratamento das matérias, a ausência de facciosismo. ‘O estilo está mais para BBC World do que para Fox News, sem nenhuma propaganda mais crua’, regozijou-se.


Naturalmente, o noticiário inaugural deu grande peso ao sofrimento dos palestinos na Faixa de Gaza, onde Israel parece considerar crianças e mulheres alvos legítimos para as suas punições coletivas pelos esparsos disparos do Hamas contra civis israelenses.


‘Convenhamos, o assunto tem realmente peso’, comenta o observador, ‘e o texto com as últimas notícias ao pé da tela informava, correta e imparcialmente: ‘Israelense morta por foguete palestino’.’


Ash considera ‘excelente’ o começo da Al-Jazira English. ‘Foi uma das coisas mais encorajadoras provenientes do Oriente Médio nos últimos tempos’, conclui, antes de se precaver: ‘Mas o verdadeiro teste virá quando houver, digamos, distúrbios na Arábia Saudita, e com reportagens do dia-a-dia sobre a insatisfação com outros regimes árabes.’


Talvez mais importante para os olhos ocidentais seja outro teste – o de mostrar que uma emissora árabe pode cobrir convincentemente, isto é, sem exagerar e sem apelar, a tragédia palestina com reportagens do dia-a-dia sobre os padecimentos dos moradores dos territórios ocupados por Israel.


Não que a cobertura da opressão dos palestinos na Al-Jazira árabe seja desonesta. Mas, para o seu vasto público original, ela não precisa ser honesta para ser crível: basta que seja inflamatória. E o que não faltam são oportunidades verdadeiras para isso.


A bolha de mídia que furou


No Oriente Médio e não só ali, a nova tecnologia da informação produziu um efeito que apenas pode ser percebido adequadamente in loco – o fim da era em que a mídia americana ‘escrevia a narrativa global e o mundo se via a si mesmo principalmente através da lente de uma câmera americana’.


O diagnóstico é de um americano, o professor de jornalismo Lawrence Pintak, que tem a vantagem de morar no Egito, lecionando na Universidade Americana do Cairo.


No mesmo domingo em que o Estado publicava a resenha de Ash sobre a estréia da Al-Jazira em inglês, o Boston Globe trazia o artigo ‘A bolha da mídia americana’, de Pintak, que contém o citado diagnóstico.


O autor é do ramo. Sagaz, afirma que os Estados Unidos continuam a seguir ‘uma estratégia de comunicação analógica, numa era digital’.


Ele parte de um axioma: jornalistas de diferentes partes do mundo enxergam o mundo e a política americana diferentemente de seus colegas americanos. E as suas organizações noticiosas relatarão os fatos de maneira diferente.


Com mais de 300 canais de TV por satélite acessíveis da África do Norte à Indonésia – sem falar na internet – dá no seguinte, segundo Pintak:




‘Autoridades americanas já não podem dizer uma coisa e fazer outra. Imagens de TV de crianças mortas [na Palestina] por armas fabricadas nos Estados Unidos influem muito mais nas percepções políticas do que todos os discursos de boas intenções. O mesmo vale para as imagens do presidente americano diante de uma enorme cruz, numa reunião evangélica. Quem diz que não é uma guerra cristã ao Islã?’


Vivendo na mais importante capital muçulmana, o professor aprendeu a não subestimar o público. ‘Eles sacam a mídia’, atesta, citando o exemplo do clérigo tailandês, a 3.200 km do Oriente Médio, que disse a sentença de morte de Saddam Hussein foi divulgada a tempo de influir na política interna americana.


Não influiu – poucos dias depois, os republicanos tomaram uma sova monumental. Mas isso não muda o fato de que ‘a rua árabe’, como diz a mídia ocidental, pega fogo fácil, mas de tonta não tem nada.


Nem aí


Mas os americanos não têm jeito. Pintak conta que outro dia um conterrâneo diplomata, envolvido em assuntos de comunicação com o mundo islâmico ainda por cima, perguntou-lhe se existem blogs árabes! ‘Apenas centenas – e estão mudando a face da política árabe’, escreve o professor.


Ele conta também que, na semana passada, o primeiro-ministro turco Recep Tayyip comentou com um grupo de jornalistas ocidentais de TV: ‘A falta de comunicação entre culturas diferentes num tempo de tamanho desenvolvimento tecnológico é uma triste contradição’.


As suas declarações foram transmitidas ao vivo via satélite. Pergunta-se Pintak: ‘Mas será que alguém em Washington estava olhando?’.