O ano é 1982. As primeiras eleições diretas para governador após a anistia têm ampla cobertura da imprensa. No Rio de Janeiro, o jovem repórter Luis Erlanger é escalado pelo jornal O Globo para acompanhar o então candidato Leonel Brizola. Na verdade, ele deveria cobrir a campanha de Sandra Cavalcanti, a grande favorita. Mas o editor Evandro Carlos de Andrade resolve mudar a escala. O argumento é simples: ‘A Sandra está eleita, Erlanger. E, normalmente, quem cobre o vencedor acaba indo para o Palácio. Então, você fica com outro candidato’.
Até o fim da vida, o governador Brizola, que acabaria vencendo o pleito, contrariando todas as previsões iniciais, repetiu uma carinhosa frase para o atual diretor da Central Globo de Comunicação: ‘Começamos nós dois de baixo, tchê!’
Erlanger tem uma carreira atípica no jornalismo. Com 32 anos de profissão, começou como estagiário e chegou a diretor trabalhando sempre na mesma empresa. Apesar da vitória de Brizola, não foi para o Palácio Guanabara. Em 1984, mudou-se para Brasília com a responsabilidade de cobrir outro azarão, o candidato a presidente Tancredo Neves, que participaria da eleição indireta no Congresso, em janeiro de 1985. Novamente, o resultado foi inesperado.
– Você dá sorte para os candidatos?
– Claro que não! O Tancredo morreu!
E o país acompanhou a agonia do presidente desde a véspera da posse até o dia 21de abril, quando a morte foi anunciada. A cobertura para O Globo teve a participação de Erlanger, que permaneceu como setorista do Palácio do Planalto até 1987, quando se tornou chefe da sucursal de Brasília.
Em 1988, após a promulgação da Constituição, voltou ao Rio como editor de Política, cargo que ocuparia até 1992, ano em que Evandro o convidou para ser editor-chefe do jornal. Nesse período, comandou coberturas importantes, como o impeachment de Fernando Collor e a eleição de Fernando Henrique Cardoso. Mas, com a transferência do chefe para a Rede Globo, em 1995, Erlanger também se mudou para a redação do Jardim Botânico e assumiu a direção editorial de jornalismo da emissora.
Pausas breves
Evandro Carlos de Andrade iniciou uma revolução na linguagem jornalística do veículo. Sua equipe foi responsável por mudanças que estão presentes até hoje, como, por exemplo, a troca dos apresentadores de todos os telejornais, inclusive o Jornal Nacional, por jornalistas, o caráter comunitário dos jornais locais e a proibição de gravar contraplanos nas entrevistas. [Contraplano refere-se à gravação da pergunta do repórter após a entrevista, como recurso para compensar a ausência de uma segunda câmera, que serviria para esse propósito. Erlanger considerou o recurso muito artificial e o substituiu pelo ‘piscar um branco’, que é feito na edição com a finalidade de sair de um ponto da resposta para outro.] Em algumas elas, a idéia partiu do próprio Erlanger, cuja atuação direta na produção dos telejornais só foi interrompida em 2000, quando a diretora Marluce Dias o convidou para exercer sua função atual.
– Na época, fiquei confuso. Perguntei: ‘Marluce, o que faz o diretor de Comunicação?’ Ela respondeu: ‘O fato de você não saber indica que é bom ter um sujeito com a tua pegada’.
Ironicamente, o problema da maior empresa de comunicação do Brasil era a própria comunicação. Não só havia dificuldades para responder a críticas ideológicas, como até mesmo as ações sociais da emissora tinham uma precária divulgação. Em outras palavras, a Globo não usava a Globo para divulgar a própria imagem.
– Primeiramente, foi preciso fazer o dever de casa. Pesquisei como a Globo pretendia ser vista e o resultado foi óbvio. Por exemplo, morríamos de medo de nos apresentar como líder, mas isso é o que, de fato, somos. Outro dado: temos 98% de produção própria no horário nobre. Ou seja, investimos na cultura nacional. E também somos uma emissora comprometida com o desenvolvimento social. Queremos ser vistos como efetivamente somos.
Erlanger percebeu que a emissora sequer possuía um slogan. Na verdade, havia apenas uma pequena frase utilizada nas chamadas, que mudava a cada ano e cuja versão mais recente já tinha sido avaliada como levemente arrogante: ‘Globo e você: tudo a ver!’ ‘Podia ter muita coisa a ver. Mas tudo, não!’, concluiu o diretor, responsável pela atual marca: ‘A gente se vê por aqui!’
– O slogan resume três conceitos que queremos vender. Somos janela para o mundo, espelho da realidade e fogueira moderna, em torno da qual a família se reúne.
Na entrevista a seguir, o diretor da Central Globo de Comunicação discorre sobre os mais variados temas. Das faculdades de comunicação ao mercado de trabalho, passando por filosofia e internet. Foram quase três horas de conversa em sua sala, de aproximadamente 25 metros quadrados, no sexto andar do prédio da Rede Globo, decorada com quadros de produções da emissora, charges antigas e uma camisa assinada por Fernanda Montenegro, além de gravuras. A mais destacada delas registra a missão das Organizações Globo – que valoriza temas como interdependência, diversidade, estética e inovação, entre outros.
Na mesa de Erlanger há uma pequena bandeira do Brasil, uma valise marrom, o insistente laptop indicando a chegada de novas mensagens pela internet e poucos papéis utilizados para rascunho. Num deles, o entrevistado rabisca indecifráveis desenhos que servem de suporte para o raciocínio. Os óculos, abandonados ao lado do umidificador na mesinha lateral, parecem ser apenas para leitura, já que em momento algum ele os utiliza. O crachá profissional, pendurado no pescoço, pressiona um botão da camisa quadriculada de manga comprida. A velocidade nas palavras é quase compensada por pequenas pausas, quando os desenhos cessam e o crachá é arrumado. Mas são apenas dois ou três segundos, insuficientes para o entrevistador organizar suas anotações.
A janela e a paisagem
Se os manuais de redação permitissem, a palavra correta para definir o diretor global seria hiperprosexia, termo usado para alguém que é, ao mesmo tempo, hipertenaz e hipervigil, outros dois palavrões igualmente proibidos no jornalismo, cujos respectivos significados indicam capacidade de concentração e de mudança de objeto. Só que simultaneamente, o que é extremamente raro.
Erlanger não se esquiva de qualquer pergunta. Mas sempre procura conduzir a entrevista, como se fosse ele o repórter. Quando interrompido no meio de uma resposta, inicia facilmente um novo discurso. Mas sempre volta exatamente ao ponto onde havia parado para retomar o raciocínio, num claro exercício de memória. No final da entrevista, ainda solicita uma última intervenção, ao lembrar de um tema que, por acaso, é a manchete da próxima edição da revista Contracampo, para cuja edição de dezembro esta entrevista foi produzida: a relação da televisão com a infância e a adolescência.
– Não dá para culpar a janela pela paisagem.
A seguir, sua entrevista.
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Como a Rede Globo lida com as críticas externas?
Luis Erlanger – O grande problema é que a imensa maioria das críticas é ideológica. No máximo, referem-se a acontecimentos longínquos, como o debate do segundo turno na eleição presidencial de 1989. Ou, então, são infundadas, como a inexistente captação de recursos junto ao BNDES. Há patrulhas de todos os tipos. Na última eleição, fomos acusados tanto de apoiar o Alckmin como o Lula. Somos um veículo de massa e nos orgulhamos disso. As críticas acadêmicas tocam nesse ponto e, obviamente, registram opinião contrária. Mas também há intelectuais que têm uma posição que nos é favorável, como o francês Dominique Wolton, por exemplo, que acaba de fazer uma excelente palestra aqui no Brasil. Para ele, a TV aberta cumpre o papel de levar a cultura aos quatro cantos do país. Ou seja, levar cultura às massas e unificar a nação.
O termo cultura de massas não é pejorativo?
L.E. – Para a academia é pejorativo. As interpretações sobre o termo são as mais preconceituosas e elitistas possíveis. Massa é como a elite que se acha formadora de opinião define o sujeito de baixa renda. E a academia confirma esse conceito. O Wolton segue o caminho inverso. Para ele, nada distingue o telespectador do cidadão. Um cidadão que pertence às massas.
É possível que a liderança da TV Globo influencie nos julgamentos ideológicos a que você se refere?
L.E. – Sim. E, de certa forma, durante algum tempo, até a nossa falta de comunicação nos prejudicou. O fato é que o maior veículo de comunicação do país não se comunicava. Simplesmente, não falava com a imprensa. Hoje, nós soltamos cerca de 300 releases por mês. Meu nome consta do corretor ortográfico da Folha de S.Paulo. Não conheço nenhum outro órgão com um volume tão grande de informações. Se tirarmos o site da TV Globo do ar, quatro ou cinco publicações especializadas vão deixar de circular.
Vocês fazem alguma avaliação qualitativa das reportagens sobre a TV Globo veiculadas na imprensa?
L.E. – Fazemos. Em média, são publicadas 80 páginas de jornal por mês sobre a TV Globo em todo o Brasil. Isso equivale a uma Folha de S.Paulo inteira. Desse total, 97% têm avaliação positiva, 2% são neutras e apenas 1% constitui uma imagem negativa sobre a emissora.
Como são os critérios para essa avaliação?
L.E. – Os critérios são subjetivos. Eu faço a avaliação em conjunto com a minha equipe. Obviamente, usamos o bom senso. Se o jornal diz que está confirmado o lançamento da novela em março, é uma reportagem neutra. Mas se há um adjetivo ou uma ação específica do ministério público contra a emissora, a avaliação é qualificada, positiva ou negativamente.
Mas a mídia institucional também é muito utilizada para vender a imagem da Globo.
L.E. – Somente de alguns anos para cá. Antes, nós apoiávamos várias ações culturais e sociais, mas isso era pouco divulgado por nós mesmos. A Globo não usava a Globo. Hoje, além das nossas mensagens, são 155 mil inserções gratuitas por ano para terceiros. Desde lançamentos de peças de teatro a campanhas de saúde. Se isso fosse cobrado, seria o primeiro ou segundo maior anunciante da TV brasileira. E não existe calhau [a parte do jornal (impresso) preenchida com propaganda do próprio veículo ou com outra informação qualquer por absoluta falta de opção – ou seja, simplesmente porque sobrou um espaço na página] em televisão, pois quando acolhemos uma campanha externa deixamos de chamar a própria programação. É uma decisão institucional.
A emissora também utiliza muito o merchandising social.
L.E. – Claro. É um recurso muito importante. O Manoel Carlos é o maior legislador fora do Congresso Nacional. Posso citar três leis que partiram de campanhas promovidas por novelas dele: o estatuto do desarmamento, o estatuto da terceira idade e o enquadramento da agressão doméstica como lesão corporal no Código Penal. Mas é bom salientar que nossas ações só prosperam se a sociedade concordar com elas: apoiamos a proibição da venda de armas e quebramos a cara no plebiscito.
Como é a relação da Rede Globo com a universidade?
L.E. – Nós temos o projeto Globo Universidade, cujo objetivo é fazer uma ponte com o meio acadêmico. Mas a distância ainda é muito grande. A universidade não prepara para o mercado. Ela vive uma crise esquizofrênica. Ao mesmo tempo em que é desvalorizada pelo Estado, através do corte de verbas e dos baixos salários, ela é encastelada. Ou seja, vive acima do bem e do mal, como se fosse um castelo de excelência, mas desconectada do mundo real, do cotidiano. Recentemente, nós tivemos um problema com uma faculdade, cujo nome não vou citar, que cancelou o estágio na Globo alegando que a jornada de seis horas prejudicava o ensino.
E os alunos não reclamaram?
L.E. – Reclamaram. E o pior é que a universidade estava em greve havia seis meses. Mas a direção não percebeu que, ao contrário de algumas empresas, a Globo não explora a mão-de-obra estagiária. Nosso objetivo é qualificar o aluno. E aqui não há a menor chance de haver o famoso pistolão. O estagiário entra por méritos próprios. Não só no jornalismo, mas também em outros setores, como engenharia e publicidade.
No caso específico de jornalismo, a universidade prepara bem o aluno?
L.E. – Você não pode falar em ensino de comunicação sem estrutura tecnológica. E poucas faculdades têm. Quando eu estudava na ECO/UFRJ, em meados dos anos 1970, nós lutávamos para fazer um jornalzinho. Hoje, a facilidade é muito maior e, ainda sim, a produção é pequena. Como falar em ensinar jornalismo se as faculdades não têm estúdio, câmeras, rádio ou computadores? A universidade deve prover um conhecimento que permita o crescimento intelectual, mas também serve como instrumento para ele comprar arroz e feijão.
Mas o ensino está ligado somente a esta questão tecnológica, ou também é preciso valorizar o ensino teórico, que tem por objetivo proporcionar uma visão crítica sobre a sociedade?
L.E. – O ensino teórico é importante, mas é preciso libertá-lo dos preconceitos ideológicos que eu já mencionei. Há uma tendência na academia em criticar as grandes empresas de comunicação. Mas é uma crítica sem base real. Às vezes, até absurda. Recentemente, eu soube que, em uma determinada cadeira de Psicologia da PUC, uma professora mandou ter cuidado com as mensagens subliminares que a TV Globo veicula em sua programação. E ela se referia a imagens que apareceriam em frações de segundo (frames), imperceptíveis a olho nu. O problema é que tem gente que sai da sala de aula acreditando nisso.
Que parte da teoria é importante?
L.E. – O jornalista é um especialista em generalidades. Primeiramente, ele deve conhecer em profundidade o seu instrumento de trabalho, que é a língua portuguesa. Além disso, é preciso estudar ética, filosofia e um pouco de ciência. E também alguma coisa na área de psicologia comportamental e neurologia.
O jornalismo é um campo do conhecimento?
L.E. – Não. Não é possível nem saber o que de fato é o jornalismo. É reportagem? É coluna social? É editoração? Na verdade, é tudo isso junto. Como disse, somos especialistas em generalidades. Não dá para saber qual é a matéria-prima do jornalismo, além da informação. E não devemos ficar preocupados com isso. Nem tudo deve ter o status de ciência. A arte não é ciência e é muito importante.
Você é favorável à exigência do diploma de jornalismo para exercer a profissão?
L.E. – Não. Pela minha experiência pragmática, as faculdades não dão embasamento para o futuro profissional. Muitos alunos saem da universidade com o mesmo nível de conhecimento com que entraram. Isso é um absurdo. Então, não há motivos para limitar o exercício profissional. Além disso, há o problema ideológico que eu já citei. Não quero dizer com isso que devemos produzir vacas de presépio. Ficarei decepcionado no dia em que a faculdade não for o grande celeiro crítico do mundo. Mas é preciso ir ao foco da crítica e não inventar histórias fantasiosas.
Voltando à questão tecnológica, qual é a sua análise sobre o jornalismo na internet?
L.E. – Eu acho que nós retrocedemos na questão ética. Com a internet, a velocidade da informação é em tempo real, o que é muito perigoso. Em nome do furo e da competição, nós passamos a ser muito permissivos. Eu canso de ler reportagens que veiculam uma denúncia no primeiro parágrafo e, logo no segundo, dizem que não puderam confirmá-las. Jornais respeitáveis publicam sem checar.
A descentralização da internet não a torna um veículo mais democrático?
L.E. – Não. O que era para ser o instrumento mais democrático do mundo está se transformando na lata de lixo da humanidade. Eu sempre achei que a anarquia era o regime mais democrático de todos, mas estava enganado. Na verdade, é o regime do mais forte, já que não tem lei. Há movimentos que começam pela internet não a partir de indivíduos com espírito libertário, mas de empresas especializadas no chamado marketing viral. Uma denúncia, por exemplo, pode ser atribuída a um site e veiculada em jornal de grande circulação. Que legitimidade há nisso? Sou do tempo em que concorrência não era fonte. Sem apuração própria não se publica. Prefiro tomar um furo do que dar uma ‘barriga’ [informação equivocada publicada pelo jornal].
O Ministério Público se utiliza muito de denúncias em sites.
L.E. – O caso do Ministério Público é mais complexo. O sujeito procura um repórter e diz que pretende investigar determinado assunto. No dia seguinte, sai uma notinha sobre o tema. No outro, o mesmo procurador abre um inquérito para investigar o que saiu no jornal. A reportagem, iniciada a partir do próprio MP, passa a ser o elemento concreto para a investigação. É uma brincadeira.
A Globo tem problemas com o Ministério Público?
L.E. – Temos discordâncias. O Estado não pode legislar sobre tudo. O caso da infância é um ótimo exemplo. Hoje, no Brasil, dependendo da faixa etária, um pai não tem mais o direito de levar um filho ao cinema. É a censura que manda. Aqui na Globo o caso é grave. Nunca houve tantas ameaças de reclassificação etária sobre nossas novelas. Há a alegação de que elas são inadequadas para o horário. É como culpar a janela pela paisagem. São os pais que têm o direito e a obrigação de fazer essa escolha. É como o voto. Só que, em vez de uma urna eletrônica, eles têm um aparelho de controle remoto. É um perigo transferir esse tipo de decisão para o Estado.
Você acha que há um movimento de controle da imprensa no Brasil?
L.E. – Há um movimento subterrâneo contra a liberdade de imprensa, o que é muito perigoso. Nós sabemos como começa o controle de informação, mas não sabemos como termina. E nós somos muito visados. A Globo é o único lugar em que a corda, muitas vezes, arrebenta para o lado mais forte.
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Doutor em Literatura pela PUC-Rio e professor do mestrado e do doutorado em Comunicação da Universidade Federal Fluminense; autor de Teoria do Jornalismo (Ed. Contexto, 2005) e outros sete livros, editor-chefe da revista Contracampo