No mundo da preocupante guerra urbana que vivenciamos, qualquer um de nós – não há nenhuma dúvida – pode ser a próxima vítima fatal de um tiro de fuzil na próxima esquina. É preciso também, de quando em vez, analisarmos, ainda que não profissionais de imprensa, o trabalho do binômio mídia e violência. A vida humana, para perigosos e frios marginais da lei, nada vale. Matar, traficar, assaltar, estuprar, viraram crimes rotineiros. Já nos acostumamos, inclusive, a consumir, no dia-a-dia, como clientes assíduos, a violência estampada a todo instante nas redes sociais, no jornalismo televisivo ou nos jornais impressos.
A violência tornou-se, também, uma fonte rentável de mídia, na luta pela audiência, sem falar numa importante fonte geradora de lucros da indústria da segurança privada face o temor ao crime, aí incluída a parafernália eletrônica, cada vez mais sofisticada, da tecnologia de segurança. Registre-se que as editorias de Polícia foram as que mais cresceram nos últimos anos em jornais impressos e televisivos. Profissionais do mais alto gabarito se aprofundaram no jornalismo investigativo, sendo inclusive hoje importantes fontes de referência para a polícia, através de furos jornalísticos, contribuindo para a elucidação de vários crimes.
Há também apresentadores de televisão – alguns por demais sensacionalistas – especializados em programas que retratam especificamente a violência e a atividade policial. A mais nova profissão gerada pela violência é a figura – necessária pelo conhecimento técnico e sofisticação do crime – do comentarista de segurança, especialmente em redes de televisão. Algumas vezes, como pretenso estudioso do tema e articulista, também sou chamado para dar algum pitaco sobre o tema violência e segurança num canal de televisão ou num jornal impresso ou até mesmo em redes sociais.
Os princípios da ética jornalística
De violência, acho que todos nós sabemos um pouco hoje. No entanto, uma entrevista com o traficante Nem, antes de ser preso, efetuada na semana passada no Rio e anteriormente à ocupação da favela da Rocinha, onde era o chefe do tráfico e de tudo que tinha direito, publicada na edição de 14/11/11 da revista Época, de autoria da ilustre e competente jornalista Ruth de Aquino, causou-me espécie. Ressalte-se o destemor da nobre profissional de imprensa em dirigir-se ao encontro do entrevistado no interior do habitat do bandido, ficando cara a cara (corajosamente) com o traficante mais procurado do Rio. Poucos teriam a bravura da citada jornalista – vide o triste episódio da morte do jornalista Tim Lopes, imposta impiedosamente pelo “tribunal do tráfico” num forno de microondas.
Há que se reconhecer primeiramente, então, a elogiável coragem de Ruth de Aquino. Por um outro aspecto, porém, até que ponto tal tipo de reportagem, na obtenção do furo jornalístico, levado pelo amor à profissão, pode produzir o efeito colateral, indesejável, da glamourização de um perigoso criminoso tornando-o ainda mais um verdadeiro “mito do tráfico”? Quem não se lembra do caso do bandido/herói do final dos anos 60, o boa pinta dos olhos verdes, Lúcio Flávio, que gerou o filme O Passageiro da Agonia? E do filme Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, que retrata a vida de um bandido legendário e enigmático? Quem se lembra de que o bandido Uê, o inimigo quase invisível da polícia do Rio nos anos 90, mereceu um caderno especial na edição de um jornal quando de sua prisão?
Assim é que, para quem leu a entrevista de Nem a Ruth de Aquino, ficou com a impressão de que o bandido/traficante não é tão mau assim como se pensa. Talvez alguns passem a entendê-lo, daqui pra frente, como um “herói do bem”, uma grande vítima da sociedade injusta e excludente. Alguns que tinham por ele aversão talvez nem tenham mais. Estaríamos diante de uma nova versão da síndrome de Estocolmo? Tal tipo de matéria jornalística pode influenciar negativamente jovens adolescentes em processo de formação social? Poderão considerar que o frio e sanguinário Nem é um novo tipo de herói, um assistencialista de pobres que apenas lhes cobra “pedágios” para viver melhor (casa com piscina) que os comandados? Até que ponto tal reportagem – com a palavra, o Observatório da Imprensa, de Alberto Dines – fere princípios da ética jornalística?
Uma discussão difícil e complexa
Há mais conclusões positivas ou negativas a serem extraídas da entrevista em questão? Ou a liberdade de imprensa nesse ponto fala mais alto? Em Mídia e Violência (2007), Silva Ramos e Anabela Paiva retratam aspectos convergentes da questão com a seguinte afirmação: “A imprensa não deixou de publicar entrevistas com criminosos.”
O autor do crime de grande repercussão – pela sua crueldade, audácia ou por atingir personalidades ou pessoas indefesas, como crianças e idosos – continua a ser procurado por jornalistas interessados em “ouvir o outro lado”, obter informações que possam esclarecer o crime ou compreender as motivações do ato criminoso. Tentar compreender os valores e os objetivos de um criminoso é uma meta válida para a imprensa. Pelo sim e pelo não, ainda que o Estado tenha a maior culpa pelo vácuo e abandono, durante longos anos, de morros e favelas do Rio, propiciando a criação da figura dos “donos dos morros”, não resta dúvida que é preciso refletir e discutir, ainda que se trate de matéria muito subjetiva, o papel da mídia e a linha tênue da glamourização do banditismo. A figura do traficante Nem fez jus a quatro páginas da revista Época, duas delas referentes à entrevista concedida. Está aberta, portanto, a difícil e complexa discussão.
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[Milton Corrêa da Costa é coronel da reserva da PM do Rio de Janeiro]