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Em 1997, quando já era possível receber sinal de televisão em computador e o PC era apontado como sendo o futuro da TV, o que estava mesmo em pauta eram questões relativas ao conteúdo da programação e às mudanças administrativas na Globo. Roberto Marinho, debilitado pela idade, foi gradualmente passando o comando de suas empresas para os filhos. Na TV, Roberto Irineu tirou Boni da vice-presidência de operações, tornando-o vice-presidente executivo.
Executivo mais bem pago da televisão brasileira, Boni personalizava a Globo. De sua cabeça brotaram ideias que levaram a emissora a se manter na liderança. No final de 1997, houve mais uma troca de função e Boni passou a ser consultor de Roberto Irineu, sem a necessidade de cumprir horário na sede. A única vez em que relata ter pensado em sair da emissora foi quando Adolpho Bloch lhe ofereceu o controle acionário da Manchete, ficando a família Bloch com 10%. Com Walter Clark, formando a dupla Boni e Clark, criou o chamado “padrão Globo de qualidade”. Clark, que de 1965 a 1977 foi diretor-geral da emissora, faleceu solitário, aos 60 anos, em 1997. Depois que foi demitido da Globo, atuou na Bandeirantes, TV Rio e Fundação Roquete Pinto, sem alcançar o mesmo êxito.
A partir da segunda metade dos anos 90, um fenômeno começou a ocorrer na televisão com a acirrada concorrência entre as emissoras: os salários milionários. Boris Casoy, por exemplo, trocou o SBT pela Record por um salário de 100 mil reais, além de dois milhões em luvas. Ney Gonçalves Dias deixou a Record e foi para ao SBT por um salário também de 100 mil e um milhão em luvas. Eram, então, os dois jornalistas mais bem pagos da televisão. Entre os atores, Marília Pêra recebeu 300 mil por uma telenovela que foi cancelada no SBT e diversos atores da Globo recebiam um salário médio de 35 mil reais mesmo sem trabalhar. Por ano, Angélica recebia cerca de 6 milhões, juntando os licenciamentos de produtos, assim como Xuxa, com ganhos estimados em 12 milhões de reais. A estrela do SBT, Gugu Liberato, faturava cerca de 15 milhões, enquanto Jô Soares recebia um salário de 100 mil. Muitos profissionais, embora com salários não tão bons, optavam por ficar na Globo, pois estavam na vitrine, não valendo a pena trocar a fama por salário. Embora bem pagos para o padrão brasileiro, havia uma distância enorme com uma Oprah Winfrey, por exemplo, que em dois anos acumulou 171 milhões de dólares, ou um David Letterman, com rendimento anual na casa dos 14 milhões de dólares.
Retorno
Os altos salários têm em vista a audiência e a credibilidade. Boris Casoy ou Jô Soares, por exemplo, não dão grande audiência, mas qualificam o público e dão retorno publicitário à emissora. Quem começava a dar audiência e retorno – pela polêmica – à Record era Carlos Massa, o Ratinho. Oriundo da CNT, onde apresentava um programa policial, Ratinho foi a grande novidade no panorama televisivo e, junto com Ana Maria Braga, ajudava a Record a recuperar o seu espaço.
Para Daniel Barbará, especialista em mídia eletrônica e então diretor da agência DPZ, a televisão brasileira vivia um bom momento, tendo melhor qualidade que a americana e a europeia, de modo geral. Sobre a supremacia da Globo, dizia: “Todo departamento de mídia faz um enorme estudo para chegar na melhor programação para veicular o anuncio do ponto de vista técnico. Daí decide anunciar em cinco emissoras. O cliente aprova, passam duas semanas e o presidente da empresa anunciante me liga. Diz que a sua mulher não tem visto os comerciais de sua empresa. […] As pessoas querem ver a propaganda delas no Jornal Nacional, na novela das oito.”
Sobre a propaganda, houve também uma discussão a respeito da possibilidade da veiculação de comerciais na TV Cultura a partir de uma proposta do deputado estadual Clovis Volpi. Ele argumentava que uma emissora de qualidade como aquela não poderia estar atrelada às possibilidades financeiras do Estado, o que limitaria a capacidade criativa e tiraria do contribuinte-telespectador a oportunidade de optar por uma programação diferenciada. Já para Stalimir Vieira, professor da ESPM, a TV Cultura deveria ter o ritmo da reflexão, não do mercado, pois a educação é um processo paulatino, enquanto que a publicidade é imediatista. “Sejam feitas concessões ao consumismo, mas respeitem-se reservas intelectuais como a TV Cultura.”
Uma criança de “três cabeças”
A televisão, em 1998, viu surgir a proliferação de programas de auditório em que participantes falam de suas vidas íntimas, brigam, puxam cabelo e colocam os seus problemas nas mãos do público, como se a televisão fosse uma espécie de júri popular. Dois exemplares desse tipo de programa eram Ratinho Livre, na Record, e Márcia, no SBT. Márcia Goldschmidt fazia uma média de 16 pontos no Ibope, enquanto Ratinho atingia picos de 36 pontos em algumas noites, superando a Globo. Também na Manchete o estilo era uma chance de alavancar a audiência. Surgiu então o Magdalena Manchete Verdade, apresentado por Magdalena Bonfiglioli, ex-repórter do Aqui Agora, que deixou de ser apresentado no final de 1997.
Para combater o sucesso de Ratinho, a Globo lançou a minissérie Dona Flor e o seriado Mulher, além de colocar na bancada do Jornal Nacional William Bonner e Fátima Bernardes, indicados como jornalistas simpáticos ao público em pesquisa realizada pela emissora. Embora criticasse o estilo apelativo de Ratinho, Roberto Irineu havia tentado contratá-lo. A Globo começava a cair na tentação sensacionalista. Houve uma edição do Fantástico que exibiu uma reportagem de 42 minutos sobre o “maníaco do parque”.
Ratinho ficou pouco tempo na Record, mudando-se para o SBT por um salário de um milhão de reais. Em seu lugar assumiu Gilberto Barros, o Leão, que num dos primeiros programas mostrou uma criança de “três cabeças” – na verdade dois tumores. Leão também tirou alguns pontos da Globo, embora fosse contratado da Rádio Globo. No Domingo Legal, a novidade era a dupla bizarra Rodolfo e ET, que, em pouco tempo, detinha uma legião de fãs entre as crianças.
Protesto nas ruas
O estilo popularesco, atribuído aos programas em função da audiência majoritária ente as classes C, D, E, não era uma novidade. O próprio SBT durante a década de 80 foi assim tachado. A diferença agora era o grau de profissionalização, altos salários e repercussão. O sensacionalismo voltou com mais força e maiores cifras. Certo de que esse era ainda o melhor caminho, Silvio Santos contratou Eduardo Lafon, um dos responsáveis pelo renascimento da Record. Lafon entrou no SBT dizendo que em cinco anos passaria da Globo. “Temos que partir para o primeiro posto e o momento é este. A Globo já não está mais sozinha e jamais será a mesma, com aquela audiência de 80 pontos. A crise que atravessa é muito séria.” A maior dificuldade de Lafon, como diretor artístico, seria lidar com o imediatismo de Silvio Santos, acostumado a mexer na programação sem nenhuma cerimônia.
Se SBT e Record apelaram para a bizarrice, a Globo aumentou o erotismo em suas novelas e no Você Decide, aproveitando a nudez de estrelas como Vera Fischer, Maitê Proença, Luana Piovani e Malu Mader. Para Muniz Sodré, “não existe linha reta no padrão Globo de qualidade; quando a emissora satura, ela começa a apelar; e o povo não se ofende em ver a bundinha da Malu Mader”.
Seguindo a onda, a Manchete – que havia escandalizado os mais conservadores com Xica da Silva – voltou a reprisar Pantanal, dando assim um pouco de fôlego na audiência. Mas, de modo geral, a situação estava insuportável ao ponto de, em outubro de 1998, ter de encerrar a novela Brida, baseada no romance de Paulo Coelho, no capítulo 52, quando deveria ter 190. O diretor Walter Avancini não teve o que fazer, visto que o salário da equipe estava atrasado e a audiência estava em três pontos. A telenovela anterior, Mandacaru, conseguiu uma média de 10 pontos, usando sexo e nudez como chamariz, diferentemente de Xica da Silva que, além de cenas picantes, tinha um ótimo enredo. Com uma dívida trabalhista com fornecedores perto dos 900 milhões de reais, tendo o elenco e técnicos de Brida fazendo protesto nas ruas do Rio de Janeiro, restava pouco à emissora.
Disputas
Enquanto a Manchete agonizava, SBT, Globo e Record disputavam entre si e a Bandeirantes – que passou a usar o nome Band – procurava prestigiar gente da casa, como Paulo Henrique Amorim, Silvia Popovic e Luciano Huck. Nilton Travesso, superintendente artístico, tinha por estratégia continuar apostando no público feminino e aposentou boa parte da programação esportiva, até porque as transmissões estavam inflacionadas, especialmente o futebol. O direito de transmissão exclusiva ou compartilhada por duas redes gerou um aumento nos preços. Luciano Huck conquistava boa audiência para a Band através de seu Programa H, onde as estrelas eram mulheres seminuas que mexiam com a sensibilidade masculina. Depois do rápido sucesso conquistado no H, Suzana Alves, a Tiazinha, ganhou um programa próprio: As Aventuras da Tiazinha. Transformada em heroína vestida de lingerie e com chicotinho, sua nova missão era salvar crianças e adultos em perigo. Pensando na substituição da personagem, Luciano Huck lançou a Feiticeira, vivida por Joana Prado.
Depois de chegar ao terceiro lugar em audiência em São Paulo, a TV Cultura vivia uma profunda crise, tendo mais de 600 funcionários demitidos e audiência insignificante, além de acumular uma dívida de 23 milhões de reais. Para agravar a frágil situação, o Conselho da Fundação Padre Anchieta não renovou a vaga de Roberto Muylaert no mesmo conselho, dando margem à suspeita de intenção de reduzir sua influência na emissora. Na ocasião, seu sucessor, Jorge Cunha Lima, não quis se pronunciar a respeito. O eficiente trabalho de Muylaert pode ser exemplificado num comentário de Silvio Santos após a saída dele do comando da Cultura: “Ainda bem que você saiu de lá.”
Num momento de busca de audiência, não são apenas as novidades que contam. Em muitos casos, reeditar fórmulas de sucesso também funciona. É assim com o humor. Em 1999, a Record lançou a Escolinha do Barulho, produzida pela GPM (Gugu Promoções e Merchandising) e pela Cooperativa Artistas Unidos, criada por ex-participantes da Escolinha do Professor Raimundo, que estavam desempregados. Um dos personagens de maior sucesso da nova Escolinha era Zé Bonitinho, que passou a ser conhecido por uma nova geração. Homero Salles, diretor do programa, justificava a aposta no velho humor dizendo que “as situações no humor brasileiro se repetem; o nosso segredo é contar a mesma piada numa linguagem popular.” O humorístico era vendido pronto para a Record pela GPM por R$ 400 mil reais o capítulo.
Identificação com o público
O SBT, por sua vez, investiu na dupla Moacir Franco e Goreti Milagres em Ó Coitado, enquanto a Globo criava um mosaico entreo arcaico e o moderno em Zorra Total. Também usando o filão da audiência certa, o apresentador Sérgio Mallandro, em seu programa na CNT/Gazeta, chegou a ficar em primeiro lugar exibindo “pegadinhas” que levavam os participantes ao desespero. Esse tipo de quadro também fazia sucesso no Topa Tudo Por Dinheiro (onde começou no Brasil), no Domingo Legal e no Domingão do Faustão. Sua origem é americana, no rádio, tendo se difundido na TV através do programa Candid Cameradesde os anos 50.
Preocupada com o crescimento da concorrência, a Globo contratou Jô Soares e Ana Maria Braga, ou seja, tirou dois elementos importantíssimos da estabilidade do SBT e Record. Chico Anysio, que teve o seu humorístico O Belo e as Feras cancelado, atribuía a instabilidade da emissora à “ansiedade do Ibope”. Sobre a ideia de hegemonia absoluta da Globo, Boni explicava:
“O controle remoto facilita o zapping, mas, na realidade, o que impulsiona o uso pelo telespectador é a oferta de novas atrações e não necessariamente o aumento de canais […] no futuro, em qualquer parte do mundo, será impossível para uma emissora manter uma hegemonia absoluta de audiência. A Globo sabe disso e inteligentemente vem se preparando para ocupar o espaço no cabo, no satélite, em todas as tecnologias possíveis.”
O novo panorama da televisão, de certo modo, mostrava o retorno da figura do apresentador ou âncora. É essa função que Ana Maria Braga, Ratinho, Leão, Jô Soares, Serginho Groisman, entre outros, desempenham. Segundo pesquisa encomendada por Silvio Santos ao Instituto Retrato Consultoria e Marketing para avaliar o programa do Ratinho, o que o público gostava no apresentador era da sua autenticidade, de ser uma figura de fácil identificação do público. O apresentador é alguém que compartilha com o público a emoção, é um interlocutor ativo. É o caso de Raul Gil que, com seu programa na Record, depois de deixar a Manchete, e apoiado pelo concurso dos calouros, alcançava a liderança na audiência nas tardes de sábado.
Dever cívico e educacional
“Uma novela que dure seis meses custa 25 milhões de reais e rende 40 milhões, em média. Um programa como o de Ratinho, no mesmo período, consome 6 milhões e rende 30 milhões.” Além de ser um produto barato, o programa de auditório pode ser alterado, enquanto que numa Telenovela isso é mais difícil e arriscado. A recuperação desse estilo, segundo Valladares (1999b), se deu em função do aumento da audiência nas classes C, D e E, e a pulverização da publicidade através do merchandising. O jornalista também relaciona esse modelo ao surgimento do aparelho que permite a medição instantânea da audiência. Nos programas de variedades, o apresentador pode prolongar ou abreviar uma atração em função do ibope.
Associado a esses programas está a queda da qualidade da televisão. Em 1999, o então secretário de Direitos Humanos José Gregori propôs a criação de um código de ética fixado pelas próprias emissoras, ideia que não foi levada a sério. O pensamento das emissoras deve ter sido semelhante ao de Valladares, da revista Veja, que escreveu: “Se existe algum responsável pela educação da população, este deveria ser o governo, e não os donos das emissoras.” Se observarmos a legislação referente às concessões, veremos que não é bem assim, que as emissoras possuem um dever cívico e educacional. Por que sempre esquecemos disso?
(Continua na próxima semana no Observatório da Imprensa)
Referências
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[Alexander Goulart é jornalista e doutor em Comunicação]