Eugênio Bucci é um dos principais pensadores da comunicação social no Brasil. Estudioso, é autor de livros sobre o tema e agora, à frente da Radiobrás, defende a união de todas as TVs Públicas do país para que, juntas, reforcem suas grades de programação e sejam uma opção inteligente para o telespectador. Um grande desafio.
Ele se formou em Comunicação Social e Direito na USP. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, é autor de Brasil em tempo de TV, Sobre ética e imprensa e Midialogias, entre outros. Foi editor da revista Teoria e Debate, diretor de redação das revistas Superinteressante e Quatro Rodas, e integrou a Secretaria Editorial da Editora Abril. Também foi colunista da revista Veja, da Folha de S.Paulo, do Estado de S.Paulo e do Jornal do Brasil.
Sempre foi defensor da TV pública, posição esta que o levou a comandar a Radiobrás, nomeado pelo presidente Lula. Bucci acredita que as emissoras públicas de TV podem constituir uma alternativa à programação das TVs comerciais tanto mais abrangente quanto maior for a integração entre elas. A seguir, sua entrevista.
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Alberto Dines – Este Observatório começou há dez anos com um projeto de fazer a sociedade discutir a mídia, mas para que a sociedade discutisse a mídia era preciso também que a mídia discutisse a mídia, porque só assim esse debate chegaria à sociedade. Foi difícil, sobretudo porque o Observatório era uma voz quase solitária: tinha que criticar a mídia e às vezes criticar o governo quando ele não entendia a mídia. Assim foi em 2004, quando surgiu a funesta idéia do Conselho Federal de Jornalismo, e assim foi depois dessa sucessão de escândalos chamados de valerioduto, mensalão ou que nome tenham, em que a imprensa cumpriu o seu papel. Às vezes de uma forma bem correta, às vezes de uma forma incorreta, mas cumpria. Estava fazendo o que lhe competia e, de repente, nós temos a mídia sendo atacada, levada aos palanques eleitorais e sendo confrontada na sua função de fazer a mediação entre sociedade e governo.
Este foi um ano que, pelo aspecto da mídia, não foi dos mais entusiasmados. Mas com Eugênio Bucci talvez possamos esclarecer uma série de questões com o seu bom senso e sua visão porque foi um homem que fez a crítica da mídia quando estava dentro da mídia – o que é uma tarefa muito difícil, convenhamos. E a desde quando foi chamado a participar do governo, soube considerar a mídia uma instituição.
Eugênio, tivemos há pouco quase um ‘caso’ chamado Radiobrás. Um jornal começou a dizer que você tinha pedido demissão ao presidente, e que você estava reclamando das pressões, e que o PT estava criticando a sua imparcialidade. Em suma, aquela bola de neve que nós já conhecemos: uma dia um jornal dá uma coisinha, no dia seguinte outro jornal amplia, e de repente temos quase um caso, e a Radiobrás sendo tratada em editoriais nos jornais.
Eugênio Bucci – Boa noite Dines, boa noite ao telespectador do Observatório da Imprensa, esse programa que é um marco de reflexão sobre a mídia – e refletir sobre a mídia é formar uma relação mais saudável entre a sociedade e os seus meios de comunicação. É um grande prazer estar aqui.
De fato, nos últimos dias, deu-se o que você estava dizendo, uma espécie de ‘caso Radiobrás’ porque se comentou que eu havia entregue uma carta em que eu ponho meu cargo à disposição do presidente da República em função de pressões que eu teria recebido do Partido dos Trabalhadores e setores do governo. Não foi isso o que aconteceu. De fato, dois dias após o segundo turno, quando o presidente Lula, com 58 milhões de votos, foi reconduzido ao seu posto por vontade dos eleitores brasileiros, eu, como já havia antecipado em entrevistas que dei há mais de ano, entreguei o meu cargo por entender que um mandato é o suficiente para alguém que preside uma estatal possa expor, implementar e fazer andar o seu projeto; e que numa renovação de governo, os cargos devem ser renovados.
Isso faz parte do ritual: terminou o mandato, oferece o cargo e se houver necessidade de continuar, se reexamina.
E.B. – Isso de haver necessidade de repetir e continuar é uma outra conversa. O meu compromisso com o presidente da República, que é um compromisso que muito me honrou, é um compromisso de um governo. Então eu expus esse meu pensamento em uma carta para o presidente da República, com cópia para o ministro de Estado Luiz Dulci e agora, nessa transição e renovação dos postos, certamente isso vai ser discutido e avaliado. A minha disposição neste momento é que o presidente disponha o meu cargo e que a gente prossiga com o projeto que a Radiobrás demonstrou vitorioso, que contou com o apoio do governo. E a renovação faz parte do jogo, como você muito bem disse. Não há, enfim, uma pressão do PT para que eu saia da Radiobrás.
Mas houve críticas a essa condução imparcial, a essa busca de neutralidade?
E.B. – Houve, mas vamos pôr as coisas nos seus devidos lugares. Qualquer veículo de imprensa, seja o pequeno jornal numa pequena cidade, uma revista de ciência, uma revista de automóveis, como eu já dirigi, qualquer veículo de imprensa enfrenta contrariedades, enfrenta críticas. Isso é parte da rotina da atividade de informar a sociedade.
O Observatório da Imprensa enfrenta críticas.
E.B. – Não há atividade de informar a sociedade que não conviva com a crítica. Então, isso nós tivemos em várias ocasiões e pelos motivos mais diferentes. Não tivemos apenas insatisfações porque publicávamos uma matéria que era retratada alguma prática que podia ser considerada negativa em relação às pessoas que exercem cargos no governo federal. Tivemos outros momentos em que recebemos, muitas vezes merecidamente, reprovações de setores diversos da sociedade.
Eu me lembro que no dia 11 de junho de 2003, houve uma manifestação de 20 mil servidores públicos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, protestando contra a reforma da Previdência. Aquele dia, os nossos programas de rádio cobriram isso normalmente, a nossa televisão deu pequenas reportagens com o movimento, mas nós tivemos dois pecados mortais. O primeiro foi que a Agência Brasil não noticiou, por algum equívoco no cumprimento da pauta, porque isso fazia parte da pauta. A Agência Brasil – que é a nossa agência de notícias na internet – ignorou essa manifestação de 20 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios, o que é imperdoável. Era um grupo de pessoas que alguém dificilmente em Brasília poderia não notar. Assim como tivemos um outro erro grave na Voz do Brasil naquele dia. E eu digo isso aqui abertamente, porque é importante que o telespectador saiba que a Radiobrás procurou ser objetiva, procurou e conseguiu ser apartidária, mas como veículo que congrega vários veículos de imprensa, errou também muitas vezes, essa foi uma das vezes e eu admito aqui esse erro.
O erro aconteceu na Voz do Brasil. Naquele dia, 11 de junho de 2003, não apenas não informou o público que havia uma manifestação de 20 mil servidores contra a reforma da Previdência como deu uma pequena manchete dizendo que os servidores entregavam ao governo propostas para melhorar a Reforma da Previdência. Só não contaram que eram 20 mil servidores na Esplanada dos Ministérios.
Isso causou uma discussão profunda dentro da Radiobrás, que apressou a reforma radical que nós fizemos na Voz do Brasil, que estrearia três meses depois com uma postura completamente diferente, porque informação é um direito do cidadão brasileiro, não é demais nunca repetir essa verdade. Muitos defendem a Voz do Brasil, que ela tem que existir como existe porque chega a lugares onde nenhum outro veículo chega, sobretudo nos lugares onde não há energia elétrica em casa. Este é um argumento verdadeiro. Ora, se esse é um argumento verdadeiro, como é que os funcionários da Radiobrás podemos nos permitir sonegar uma informação tão relevante para esse ouvinte da Voz do Brasil, que não tinha outro meio de saber o que se passava em Brasília naquele dia?
São erros que aconteceram, outros também aconteceram, mas isso é parte da rotina. A gente vai corrigindo. Definitivamente, eu não fui pressionado por ninguém a entregar o meu cargo.
Sabe-se que a Voz do Brasil não é só do Executivo, ela é também do Legislativo e do Judiciário. E se, de repente, o Executivo resolve que não quer mais esse tipo de noticiário, como é que ficam os dois poderes que o compartilham? Como é que você vê o futuro da Voz do Brasil?
E.B. – Eu até publiquei um artigo em que afirmei publicamente a minha posição de que a Voz do Brasil precisa passar por uma avaliação e que, no mínimo, seu horário deve ser flexibilizado. O horário de transmissão da Voz do Brasil deve abranger uma faixa que vá das 19h às 22h, ou das 18h às 22h, e as emissoras de rádio deveriam ter uma autorização para escolher o horário melhor para a transmissão. Mas isso é a medida que eu considero mínima, não é a medida que eu considero suficiente para corrigir esse anacronismo que, na minha opinião, existe quando nós estamos falando de um programa do Estado brasileiro, com duração de uma hora, que tem sua transmissão diária obrigada por força de lei. Não há justificativa no sistema democrático para uma cadeia nacional de uma hora todos os dias nesse formato. A minha avaliação – e eu já disse isso publicamente – é de que a existência desse tipo de comunicação compulsória corrói a credibilidade dos próprios poderes da República.
E até da informação que está sendo veiculada.
E.B. – Claro. Se você tem um programa que é veiculado por imposição, aquilo que ele comunica já passa ao ouvinte com uma ponta de dúvida. Essa desconfiança é legítima, mas isso corrói não apenas a credibilidade daquela informação. Na minha opinião, corrói também a imagem dos poderes da República que ficam com essa imagem de que precisam recorrer a mecanismos de imposição para se comunicar com o público. Isso é péssimo. Eu acho que isso precisa ser revisto. Fizemos em conjunto com Câmara, Senado e Poder Judiciário seminários para discutir esse assunto e acredito que avançaremos nessa discussão.
Você falou sobre a Voz do Brasil, sobre essa questão orgânica, que ela é autoritária, outorgada. Agora, ela contribui, tem feitos na parte jornalística? Ela funciona, ela serve à sociedade brasileira?
E.B. – É interessante observar porque eu avalio que a imposição legal com a qual a Voz do Brasil é veiculada não é um bom formato, não é uma boa solução. É um anacronismo na comunicação nacional. Isso fazia sentido nos anos 1940, mas não faz mais sentido no século 21. Isso não significa que a direção da Radiobrás tenha negligenciado a sua obrigação legal de fazer a Voz do Brasil. Nós somos incumbidos do primeiro horário da Voz do Brasil, que são aqueles primeiros 25 minutos que informam sobre o Poder Executivo. Fizemos uma reforma profunda na Voz do Brasil. Ela passou a ter como foco o atendimento do direito à informação do ouvinte de rádio, sobretudo aquele ouvinte que não tem outro lugar para tirar a informação, que depende do rádio pra saber a situação do país. Passamos a informar objetivamente este ouvinte sobre o Poder Executivo e sobre os fenômenos que se relacionam com ele.
Nós estreamos esse novo programa no dia 1º de setembro de 2003 e, desde então, a coisa mudou muito. A Radiobrás ganhou, inclusive, prêmios de jornalismo com matérias da Voz do Brasil. Em 27 de março de 2006, o primeiro programa de rádio a informar a situação de saída do ministro Palocci – e depois o indiciamento na Polícia Federal do antigo presidente da Caixa Econômica Federal – foi a Voz do Brasil, ao vivo, e sem nenhum problema para o governo. Quando o Poder Executivo tem uma instituição que é uma [empresa] estatal com meios de comunicação sob seu controle, o [seu] dever é informar respeitando o direito do cidadão e não transformar esses veículos em assessorias indevidas para promover a imagem de pessoas ou autoridades com técnicas publicitárias absolutamente inadequadas, fora das atribuições dos institutos ou dos veículos que estão sob controle da Radiobrás. Nós informamos jornalisticamente nesses primeiros 25 minutos da Voz do Brasil. Isso é reconhecido pelo ouvinte e é isso que o Estado tem que fazer se esse programa ainda perdura.
Você menciona o papel do Estado. Nós tivemos na sociedade brasileira uma situação muito irregular. Foi a mídia sendo levada para o palanque eleitoral e sendo enfiada, de certa forma, num corredor polonês. Alguém dá um cascudo e depois começa a dar outro cascudo e o debate salutar, saneador e democrático sobre a mídia vira uma coisa antidemocrática, porque é colocada no banco dos réus e aí realmente todos os instintos autoritários são acionados e a coisa foge ao seu papel. Como é que você vê isso que aconteceu nos últimos meses? É uma realidade, e a história da imprensa no Brasil vai registrar que, em 2006, a mídia foi levada aos palanques e foi sendo massacrada homeopaticamente, eu diria, até chegar o momento que se inventou em alguns veículos de comunicação ditos engajados que a mídia tinha um complô contra o governo. Como é que você vê esse episódio que nós ainda estamos vivendo?
E.B. – Em primeiro lugar, eu acho fundamental que os veículos de imprensa e o jornalismo sejam debatidos. Acho que é dever de vários representantes de organizações sociais, de partidos e instituições criticarem e discutirem os meios de comunicação. Criticarem e discutirem o que acontece no jornal, numa revista, num canal de televisão. Quanto mais a sociedade questiona a informação que recebe, melhor tende a ser o serviço dos informativos, melhor tende a ser o jornalismo nessa sociedade. Nós precisamos olhar com mais atenção e tomar cuidado para não ter a instituição do Estado – ou do governo – tomando partido exageradamente nesse debate. O Estado é o lado forte, não é a vítima e não pode querer vestir a fantasia da vítima. A vítima, em geral, na história das democracias na América do Sul, é a instituição da imprensa. Quem precisa ser protegida é a instituição da imprensa.
Fiz crítica de imprensa até o momento em que fui para o governo. Não sou integrante do governo propriamente dito, eu sou presidente de uma estatal que é uma empresa da administração indireta, tecnicamente falando, mas sendo presidente de um empresa, um cargo nomeado pelo presidente da República, me vi impedido por um conflito de interesses postos: o de continuar com colunas em jornais e revistas e de continuar opinando sobre os meios de comunicação. O telespectador, o leitor, iria se perguntar, com toda legitimidade, ao ver uma crítica ou uma opinião minha sobre os meios de comunicação, se eu estava dizendo aquilo a partir de uma observação independente ou se para atender algum interesse de governo, que eu não estava declinando no momento. Então, a situação de quem está no governo deve antes primar pela defesa da instituição da imprensa, independentemente da conduta dos veículos que compõem essa instituição, e só em segundo lugar emitir uma opinião, mas com toda cautela.
O que eu gostaria de destacar é que o balanço geral que nós vimos neste governo, no que se refere ao meu trabalho, é um balanço positivo porque a Radiobrás sempre teve uma tradição de funcionar como porta-voz do governo. Isso é parte da história da Radiobrás, não é algo que eu esteja inventando nesse momento ou uma opinião de alguém que passou pela Radiobrás. É a conduta material comprovável, verificável da Radiobrás. A Radiobrás apenas se distanciou dessa linha, que é uma linha oficialista, que aliás não era sua atribuição legal. A Radiobrás não tem atribuição legal de fazer serviço de porta-voz, de assessoria de imprensa, de propaganda de governo. Essas atribuições pertencem aos organismos da administração direta. No entanto, a Radiobrás cumpria esse papel oficialista de fazer propaganda e promoção. Nesta gestão ela deixou de fazer, ela assumiu o compromisso com o direito à informação do cidadão. Ora, isso aconteceu nesse governo, no primeiro governo Lula. Isso é importante de ser levado em conta em relação a outras iniciativas. Nós temos hoje dentro da Radiobrás uma série de problemas, de limitações, mas visivelmente, se forma comprovada, [seu trabalho jornalístico] busca a objetividade e pratica o apartidarismo. Nós saímos de uma cobertura eleitoral sem que tenha havido um único deslize do ponto de vista partidário. Fomos criticados por termos veiculados notícias contra uma candidatura ou coisa assim, mas não houve a prática de partidarismo. Nenhum diretor da Radiobrás fez campanha política. São progressos notáveis do ponto de vista dessa estatal que aconteceram dentro desse governo.
Nos últimos meses a imprensa virou um saco de pancadas, que a culpa era da imprensa, que havia um complô, uma situação de intimidação. Eu considero assim e no Observatório vários colegas se manifestaram nesse sentido e outros não, naturalmente, porque o Observatório é um fórum. Mas eu queria avançar um pouco nisso, como se fôssemos cirurgiões que trabalham ali na ferida para curá-la, para que ela não progrida e seja realmente estancada. O que se pode fazer para [enfrentar] esse ambiente, esse clima de desconfiança que certas figuras ligadas ao governo jogaram em torno da imprensa?
E.B. – Nós podemos ver episódios em que a imprensa foi injustamente criticada e episódios em que a imprensa deu vazão a acusações não fundadas. Isso é um jogo pelo qual nós estamos passando e que trará bons resultados. Na minha opinião, não há e não houve complô dos meios de comunicação. Alguns acham que houve acordos, entendimentos que buscavam objetivos inconfessáveis. Eu vejo a instituição da mídia e da imprensa como um ambiente mais aberto à contradições e aos mecanismos que se auto-regulam. São mecanismos de compensação interessantes. Se nós pensarmos a evolução da democracia brasileira, de 1989 para cá, nós vamos ver, na média, que a conduta dos meios de comunicação tem altos e baixos. Eu não quero fazer uma avaliação além daquilo que me é devido, mas a despeito dos altos e baixos, a evolução da conduta dos meios de comunicação, tomados no seu conjunto, é uma evolução mais transparente, mais aberta ao contraditório. Se houve excessos em 2006, por parte de um ou outro veículo, houve também uma ampla discussão na sociedade – e não no governo – por meio da internet, e pelo Observatório da Imprensa que está na internet, no rádio e na televisão. Isso tudo contribui para que os erros da imprensa sejam avaliados pelo próprio público.
Só há um jeito de corrigir problemas na liberdade de imprensa, é com mais liberdade de imprensa. Disso deve-se ocupar a cabeça daqueles que têm condição de propor mecanismos para a regulagem da sociedade. Nós precisamos saber se o sistema de competição entre os meios de comunicação é um bom sistema, se há espaço para diferentes veículos de comunicação – tudo isso, marcos regulatórios podem ajudar a propiciar. Esta deve ser a preocupação dos governantes, e tem sido, e não a preocupação de ficar fazendo crítica da imprensa, que são aspectos minoritários na curva geral do que nós estamos assistindo no Brasil.
O que nós podemos fazer para que esses confrontos encontrem um caminho natural, que é o caminho democrático?
E.B. – Eu sou um esperançoso sempre e tenho muita confiança nos caminhos do diálogo. Eu acredito que a ferida talvez não seja tão séria. Há um acalorado debate que tem momentos diferentes e é importante a gente saber que existem erros que são apontados em público e que são discutidos em público. Não é verdade que a sociedade seja composta de carneirinhos que seguem as orientações dos meios de comunicação. Nós temos centenas de eventos que atestam que o processo livre de formação da opinião e da vontade continua soberano. Não há a verificação de que os meios de comunicação tenham o poder de mandar sobre a decisão do cidadão. Não é isso que se passa. O espírito crítico existe e dá prova de sua existência todos os dias. Eu não vejo uma ferida como ameaça fatal. Eu vejo que há a necessidade de um amadurecimento, de um diálogo: quanto mais, melhor.
Nós temos problemas estruturais na comunicação do Brasil. Nós temos a ausência de marcos regulatórios que limitem a concentração de propriedade, que existem nos Estados Unidos e nos principais países europeus. Nós tendemos a correr o risco de ter desequilíbrio nesse setor e de ter, às vezes, um veículo ou uma empresa falando sozinhos. Se formos observar o quadro americano, vemos que existem limitações para que uma mesma empresa, um mesmo grupo econômico, não passe a controlar os principais jornais, emissoras de rádio, a principal emissora de TV aberta numa mesma área geográfica – numa mesma cidade, por exemplo. Essa limitação é muito útil tanto para a diversidade de opinião como para a pluralidade e a livre competição entre as empresas, e não é observada no Brasil. E ela é vigiada em várias das democracias que nós adotamos como referência.
E sobretudo nos Estados Unidos que é apontado como o exemplo de um país anti-regulador.
E.B. – Nos Estados Unidos essa regulação é forte. É um mecanismo escolhido pelo Senado e existe há quase setenta anos. Ela fiscaliza os parâmetros. [A Federal Communications Commission (FCC)]é uma típica agência de regulação. Nos outros países funciona com outras ferramentas, mas o princípio geral é o mesmo. Então, nós precisamos observar isso porque se esses limites não existem numa sociedade como a brasileira, configura-se muitas vezes, uma situação de monólogo. Um único grupo ou um único veículo assume a condição de falar sozinho e isso desequilibra o jogo da democracia, que pressupõe multiplicidade de vozes, opiniões e assim por diante.
Há aí aspectos importantes. A discussão sobre a concentração da mídia e uma aberração, uma excrescência antidemocrática, que é a concessão de rádio e televisão a parlamentares, a congressistas. Esses dois problemas são para mim as mazelas fundamentais, as mães de todas as mazelas da mídia brasileira. Pois bem: onde é que vai se discutir isso? Qual é o fórum? Como discutir sobre o Congresso se o Congresso é o beneficiário de uma dessas mazelas, com as concessões [de radiodifusão] a parlamentares? O Brasil encontrou uma solução. Tinha um fórum, legitimado pela Constituição, que é o Conselho de Comunicação Social; e nesse governo, que está se encerrando agora, o Conselho de Comunicação Social foi esvaziado de uma forma lamentável, fatal. Eu fui conselheiro no primeiro mandato onde se discutiu a questão da concentração da mídia e onde se podia realmente, não encontrar soluções, porque não era o órgão técnico, mas pelo menos levar o assunto para a sociedade.
E.B. – A primeira coisa que nós devemos ter em mente é que o Conselho [de Comunicação Social] é vinculado ao Senado. Ele é um órgão que está no âmbito do Poder Legislativo. Não é o governo, que é Poder Executivo, que dita os rumos do Conselho. Mas eu já estive no Conselho há um ano ou dois, há contribuições minhas publicadas e ali está se discutindo alguma coisa com relação ao que nós estamos falando aqui.
Estava…
E.B. – Mas eu mesmo discuti isso lá. Eu fui discutir, inclusive, a obrigação dos meios vinculados ao Estado pararem de atuar como se fossem assessoria de imprensa não atribuídas disso e começassem a atuar para atender o direito à informação do cidadão. Isso é uma discussão que se travou ali e várias outras, mas eu vou aqui repisar um chavão: se essa discussão, se esse tema não estiver claro na sociedade, dificilmente ele vai prosperar nos escalões do Legislativo ou do Executivo. E existindo ou não deputados que sejam associados ou mesmo donos de emissoras, nós teremos que passar essa discussão também pelo Congresso Nacional. Aquele caminho é uma trilha obrigatória, não há alternativa fora isso. Precisamos discutir isso lá. É a mesma coisa da Voz do Brasil: ela ainda se encontra dentro dessa camisa-de-força que tem, por força de lei, e, para transformá-la, é preciso que a gente consiga aprovar uma nova legislação. Não podemos nos esquecer que o próprio presidente da Câmara, Aldo Rebelo, já manifestou publicamente sua posição favorável à flexibilização do horário da Voz do Brasil e nós ainda convivemos com essa situação, porque é necessário haver aprovação de uma nova lei no Congresso Nacional que mude a situação.
Agora, não tenha dúvidas de que a ausência de limites democráticos que protejam a competição entre os veículos e que protejam a diversidade e pluralidade no debate público, talvez seja mesmo a mãe dos problemas que nós estamos enfrentando. Eu não me incomodo tanto com erros de imprensa porque há mecanismos na sociedade, cada vez mais, que identificam esses erros de imprensa e obrigam esses veículos a se corrigirem.
E a própria imprensa se autocorrige.
E.B. – Eu acredito nisso, mas é preciso que seja uma imprensa que funcione realmente em bases democráticas. Isso cabe ao legislador observar e isso cabe à sociedade reclamar e demandar. Então, nós estamos diante de uma tarefa muito maior do que a tarefa de ficar trocando ressentimento de um lado a outro. Isso precisa passar, precisa ser superado com o diálogo. Eu acredito nisso e o presidente da República já manifestou isso: quer conversar muito mais com a imprensa e eu tenho certeza de que vai fazê-lo.
[O presidente da República] prometeu na noite da confirmação da sua vitória, 29 de outubro, que essas relações iam mudar e que pretendia fazer uma grande entrevista coletiva – e fez um ensaio de quatro perguntas, que não foi uma entrevista coletiva porque foi realmente improvisado e sem réplicas. Como é que você vê a possibilidade de nós criarmos esse rito, que é um rito do sistema democrático, de o presidente se apresentar aos meios de comunicação, descolado de autoridade e, evidentemente, com todo respeito que merece, ser questionado, ser perguntado? Quando é que nós vamos ter isso implantado, ritualizado no processo brasileiro?
E.B. – Eu não tenho a solução. Eu preciso deixar claro para o telespectador que o cargo que exerço é o cargo de presidir uma estatal, com incumbências e atribuições específicas, e delas eu tento tomar conta com o melhor da minha energia. Eu não sou o encarregado de entrevistas coletivas ou da comunicação do presidente da República. O que eu posso dizer é o que qualquer cidadão pode dizer: que o presidente assumiu um compromisso e mesmo no dia em que foi confirmada a grande maioria que ele obteve nas eleições. O gesto de ele abrir perguntas, o gesto que ele tem procurado tomar aqui e ali de conversar mais com os jornalistas indicam isso. Claro que isso depende do ritmo do discernimento e da sensibilidade do presidente da República – e eu falo apenas como cidadão. Eu acredito que ele percebe a importância desse assunto, tanto que externou esse pensamento e essa percepção, dizendo que procurará dialogar mais. Isso será bom para o país, para a imprensa, mas acima de tudo para o presidente da República – e ele sabe disso. É dessa maneira que eu consigo avaliar essa situação dentro daquilo que cabe a mim como observador e cidadão.
A Radiobrás tem contratado mais negros como apresentadores a fim de promover uma política de inclusão e valorizar a imagem do negro na TV?
E.B. – A Radiobrás tem apresentadores e apresentadoras não apenas negros ou afrodescendentes, mas de diversas representações ou minorias. É uma preocupação, mas o fundamental é que isso se reflita dentro de qualquer empresa, não apenas as empresas de comunicação e na grade de programação da televisão pública no Brasil. As diversas faces do país, seja na questão étnica, cultural, ideológica, partidária, religiosa, musical, geográfica, isso precisa aparecer. Hoje a TV Nacional de Brasília exibe programas de dez estados diferentes da Federação. São programas produzidos pelas diversas emissoras públicas do Brasil e isso também é refletido na programação. A diferença precisa ser a força da comunicação democrática.
Você tocou no assunto da TV pública e nós já estivemos juntos aqui neste programa, numa edição memorável em que estiveram presentes os presidentes das diversas redes, você, da Radiobrás; a Beth Carmona, da TVE; o Marcos Mendonça da TV Cultura. Foi realmente um programa extraordinário. O que é que nós podemos fazer para que tenhamos realmente uma efetiva TV pública no Brasil, com interesse público? O que nós podemos fazer para avançar para que esses dois grandes conjuntos, mais as emissoras independentes, possam trabalhar juntos e não fiquem se desgastando, se fragmentando e que não consigam ser uma alternativa verdadeira para a TV comercial, que está aí sozinha, impondo padrões? O que podemos fazer para termos um TV alternativa pública no Brasil?
E.B. – Primeira coisa é ter consciência de que um país, uma democracia precisa de sistemas complementares de comunicação. Um é o sistema comercial, que é legítimo e fundamental, não pode haver democracia sem essa comunicação de mercado. A outra é o sistema público de comunicação, aquele que não é feito com finalidades comerciais. Ele não é nem melhor nem pior que o sistema comercial. Ele precisa ser diferente, precisa propor um outro tipo de comunicação e, muitas vezes, várias coisas só podem ser feitas na comunicação pública. Eu não vou listar aqui os exemplos, mas são inúmeras as atividades culturais e informativas que podem vir a público apenas pela TV pública, porque não são comercialmente interessantes, atraentes, lucrativas. Agora, neste exato momento, o Ministério da Cultura, com apoio da Radiobrás, da TVE do Rio de Janeiro e já das associações da comunicação pública no Brasil, que são as associações das emissoras de televisão pública do Estado, as associações das emissoras universitárias, a associação das emissoras comunitárias, todas essas entidades estão juntas em torno do Ministério da Cultura chamando um grande fórum de televisão pública no Brasil.
Esse Fórum vai acontecer no início do ano que vem. No final deste mês [novembro] nós já vamos dar a público um caderno de debates, com um diagnóstico detalhado desse setor e o que vai se produzir aí é o encontro dessas várias emissoras e instituições que vão reconhecer seus pontos comuns e descobrir novas maneiras de trabalhar em conjunto. Nós já temos vários desses setores que trabalham em conjunto, mas é preciso avançar muito mais. Para avançar, é preciso ter o entendimento do setor e o apoio do Estado. É isso que está se definindo agora com esse fórum da TV pública.