O escritor Gilberto Amado fora contratado pelo português João Lage para colaborar no jornal O Paiz, do Rio, cujo controle tinha conseguido de maneira pouco transparente. Num artigo, Amado elogiou Lauro Müller, ministro do Exterior e rival do poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado, amigo de Lage e com quem este tinha grande intimidade. O próprio Amado presenciou um encontro em que Lage dizia ao senador “‘Bocê! Bocê, Pinheiro…’ em tom elevado, bem audível.”
Por causa do artigo sobre Müller, Lage explicou a Amado como se faziam os negócios no jornal: “Rapaz… as cavações no O Paiz quem faz é a redação, nos editoriais, nos ‘sueltos’ [comentários curtos], no corpo do jornal; não os colaboradores de coluna assinada” (como era o caso de Amado). Depois perguntou: “Quanto o Lauro lhe deu ou lhe mandou prometer?” Quando Amado se preparava para soltar sobre o português um tropel de insultos, a começar pelo “nome de mãe”, Lage sorriu: “Acalme-se! Bocê se ofende à toa. (…) Um artigo como o seu, (…) pondo em tal destaque o Lauro, vale muito (…) como matéria paga”.
Lage estava certo. Conhecia bem o mercado em que operava. O artigo, realmente, valia muito: valeu ao seu autor uma viagem à Europa a serviço do governo. O que não impediu que Amado se tornasse depois assessor do senador Pinheiro Machado, o grande inimigo de Lauro Müller.
Colaboradores de escol
Na história da imprensa brasileira, O Paiz tem a duvidosa distinção de ser considerado o mais corrupto dos grandes jornais. Embora seja difícil estabelecer um ranking preciso de uma prática fortemente enraizada no jornalismo, é certo que O Paiz viveu da generosidade dos cofres públicos em troca de um apoio incondicional aos mandatários do dia, qualquer que fosse sua política ou coloração.
Mas O Paiz não foi apenas isso. Foi, durante vários anos, um dos jornais mais bem escritos, mais atraentes pela sua feição e entre os de maior tiragem. Aparentemente, os leitores desconsideravam sua orientação política e procuravam as crônicas e opiniões de seus colaboradores, entre os mais brilhantes do momento. Seu nome era curto, mas os cariocas o encurtaram, mais ainda, para apenas “O”, como era conhecido nas bancas.
O Paizfoi fundado em outubro de 1884 pelo comerciante português João José dos Reis Júnior, futuro conde de São Salvador de Matosinhos. Seu primeiro redator-chefe foi Rui Barbosa, que só ficou três dias no cargo. Foi substituído por Quintino Bocaiuva. Tipógrafo, estudou direito em São Paulo, começou no jornalismo como colaborador de A Hora, de São Paulo, e foi chefe da redação do Diário do Rio de Janeiro quando esse jornal foi relançado em 1860, de O Globo (sem relação com o jornal atual do mesmo nome) e de A República. Era também o chefe do Partido Republicano.
No primeiro número, O Paiz se apresentou aos leitores como um jornal neutro, isento e imparcial na cobertura política, mas em pouco tempo suas páginas tornavam evidente a pregação republicana e abolicionista. Uma exceção era a coluna de Joaquim Nabuco, abolicionista, mas que divergia da linha do jornal ao defender a monarquia em sua coluna “Campo Neutro”. Ele começara a colaborar por insistência de André Rebouças (engenheiro mulato e um dos líderes abolicionistas), mas, depois de repetidos desentendimentos, Rebouças escreveu que Nabuco, “por não poder suportar mais a hipocrisia” de Quintino Bocaiuva, acabou abandonando O Paiz”.
As instalações, sumamente precárias, tinham pertencido anteriormente ao diário O Cruzeiro. Segundo Luís Edmundo Mello Pereira da Costa, em O Rio de Janeiro do Meu Tempo, a sede do jornal era “um casarão velho, sombrio, a pedir a esmola de uma boa picareta, a graça de um desabamento, ou então, um incêndio providencial”. A pitoresca descrição, embora algo carregada, não parece fora de lugar, mas é necessário olhar com cuidado as avaliações de Luís Edmundo sobre a imprensa da época. Ele trabalhava no Correio da Manhã, o principal concorrente de O Paiz, e não foi um observador tão mordaz a respeito do Correio e de Edmundo Bittencourt, seu dono, a quem dedicou chocantes elogios. A tarefa de parodiar Luís Edmundo e o Correio caberia a Lima Barreto em seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Desde o começo, O Paiz encontrou boa aceitação. Antes da Abolição, em 1888, alegava uma tiragem de 11 mil exemplares. Anos mais tarde, diria que chegava a 32 mil. Depois de polemizar com a Gazeta de Notícias, o conde de Matosinhos se bateu em duelo com seu diretor, Ferreira de Araújo, em 1889.
O jornal teve entre seus colaboradores alguns dos mais conhecidos escritores da época. O líder abolicionista Joaquim Serra escrevia a coluna “Tópicos do Dia”; o romancista Coelho Neto (Charles Rouget) publicou “Os Narcotizadores”. Em suas páginas sai O Coruja, de Aluísio Azevedo, em 1885; e em 1892, Manuel Lúcio, a primeira obra de Afonso Arinos de Mello Franco (Afear), tio do político da UDN com o mesmo nome. Carlos de Laet, que deixara o Jornal do Commercio por desentendimento com a direção, se refugiou em O Paiz, junto com sua popular coluna “Microcosmo”. Outro assíduo colaborador foi Euclides da Cunha.
Urbanização do Rio
Numa iniciativa pouco comum, o jornal começou a ganhar dinheiro com informação internacional. Montou um centro telegráfico, que nada mais era do que a reprodução dos telegramas que recebia da agência de notícias Havas e os revendia a outros jornais.
O Paizse viu envolvido indiretamente na primeira crise política da recém-instalada República. No fim do período imperial, foram proibidas as “maltas” de capoeiras, bandos acusados de agredir e matar pessoas nas ruas. Um observador francês disse que os capoeiras eram verdadeiros bandidos que em certos dias aterrorizavam a capital. A República decidiu apertar a proibição. O chefe de Polícia do Rio, João Batista Sampaio Ferraz, o “Cavanhaque de Aço”, mandou prender os capoeiristas. Um dos mais temidos era José Elísio dos Reis, o “Juca Reis”, líder de uma “malta” e conhecido pela sua agressividade. Era filho do conde de Matosinhos, o fundador de O Paiz. Ele e seu grupo tinham dispersado em 1881 um comício republicano em praça pública e em 1877 fora acusado de “chicotear ferozmente” a atriz francesa Suzanne Costera nas escadarias de um teatro.
Ao voltar de Portugal para assistir à partilha da herança do pai, Juca Reis foi preso no Rio. Seu irmão Elísio herdara o título de conde de Matosinhos e O Paiz, o principal suporte que o governo tinha na imprensa e seu órgão oficioso. Elísio pediu a intermediação de Quintino Bocaiuva, o primeiro ministro do Exterior da República, que tinha sido redator-chefe do jornal e que ainda influía em sua orientação política. Bocaiuva solicitou ao presidente, o marechal Deodoro da Fonseca, a libertação de Juca e ameaçou com a demissão caso não fosse atendido. Deodoro ordenou sua soltura, mas Sampaio Ferraz disse que, nesse caso, soltaria todos os capoeiristas presos e ele iria embora. O presidente recuou, Juca foi deportado a Fernando de Noronha, “presídio de turbulentos e capoeiras”, e depois “autorizado” a embarcar para Portugal.
Seu irmão, o conde, também deixou o Brasil depois de vender O Paiz, em 1890, ao conselheiro Francisco de Paula Mayrink, banqueiro e homem de negócios, considerado o homem mais rico do país, e orientador da política financeira do governo provisório da República. Mayrink vendeu o jornal a Antonio Pereira Leitão no mesmo ano.
A imprensa, que tinha funcionado livremente durante o Império, foi submetida a uma censura severa por Bocaiuva. O Paiz, sob sua orientação, depois de defender a política de Floriano Peixoto, fez oposição ao primeiro presidente civil, Prudente de Morais, instigando militares contra ele e alinhando-se com as posições dos jacobinos. Prudente escreveu a seu irmão Manuel: “O Quintino continua amigo do governo, mas o seu Paiz continua a dar alfinetadas [ilegível] com muita má fé!”. Em outra carta: “Essa canalha é instigada pelo Paiz – que não pode resignar-se com a privação do pingue subsídio que recebia pela verba secreta – e pelo Diário de Notícias, a quem recusei essa subvenção. A polícia está preparando para dar uma sova em regra na primeira oportunidade que essa canalha oferecer”. Como observa Célio Delbes, em sua biografia de Campos Salles, Prudente de Morais “não enlameava as mãos, tingia-as de sangue”; para tratar com a imprensa, optou pela violência, em lugar da corrupção.
Com João Lage, mudou o jornal. Começara em 1898, como gerente comercial, e foi promovido a diretor. Aproveitando a viagem do principal acionista a Portugal, ele comprou as ações com um empréstimo do Banco da República, em 1904. O Paiz deu um novo salto em importância e prosperidade, com a ajuda dos poderes públicos. Cinicamente, Lage dizia que só precisava de 22 leitores: o presidente da República e os 21 governadores. Como escreveu Luís Edmundo: “Na orientação da folha, Lage, amigo incondicional de todos os governos, serve-os com diligência e com agrado. Dá, de uma banda, e de outra banda tira…” Mais direto, Nelson Werneck Sodré escreveu que “Lage tipificou, realmente, o jornalista corrupto, de opinião alugada, conluiado com o poder, dele recebendo benefícios materiais em troca da posição do jornal”.
O jornal percebeu, antes que a maioria dos concorrentes, a importância das mudanças na urbanização da cidade do Rio e instalou sua nova sede na recém-inaugurada avenida Central (hoje avenida Rio Branco). Era um prédio suntuoso, de quatro andares, que em nada lembrava o velho pardieiro dos primeiros tempos, embora não caísse no gosto de Gilberto Amado, que o considerou um dos mais feios edifícios da avenida. Para Hélio Silva, porém, o edifício era majestoso.
“Très corrompu”
O Paizera o grande concorrente político do Correio da Manhã, lançado em 1901 pelo gaúcho Edmundo Bittencourt. Ao contrário de O Paiz, que apoiava os governos desde que fosse bem retribuído, o Correio vivia de fazer uma oposição cega e sem trégua ao poder. De certa maneira, um complementava o outro. Quando atacado por outros jornais, Lage disse: “Podem os cães ladrar às minhas pernas, pois tenho canelas de aço!” Ao que Edmundo Bittencourt respondeu: “É isso mesmo! Está certo! Canela de aço e pé de cabra…”
Emílio de Menezes dedicou uma quadrinha à alegada habilidade de Lage:
“Quando ele se achar sozinho,
da treva, na escuridão,
surrupiará de mansinho
os dourados do caixão”.
Lage, porém, cuidava da qualidade da escrita e da apresentação do diário. O jornalista Max Valentim escreveu no Jornal da ABI que O Paiz era um jornal elegante, afeiçoado ao governo, “o matutino da elite, com frequência dos parlamentares e escritores, fora as damas da society atraídas pelo fulgor mundano que João Lage e senhora atraíam para o ambiente de tetos estucados e paredes de lambris”. Ele conservou os excelentes colaboradores que o jornal já tinha e contratou outros.
Lage não colocava de graça o seu jornal a serviço de uma causa sem uma boa remuneração. Mário Guastini, que trabalhava em São Paulo para O Paiz, escreveu que o secretário da Fazenda do Estado, Cardoso de Almeida, pediu a Lage que atacasse a Companhia Docas de Santos. Lage respondeu: “Essa história que o Cardoso pediu como se fosse notícia de casamento ou batizado é coisa muito complexa e ainda para ser discutida pelos tribunais. Diga ao Cardoso que vou pensar no caso, mas faça-lhe esta consideração: as Docas, na pior das hipóteses, publicam seu relatório anual no Paiz e a Secretaria de Fazenda de São Paulo não publica o seu”.
Paulo Barreto, depois de mais de uma década na Gazeta de Notícias, onde projetou seu pseudônimo, João do Rio, saiu desse jornal por defender seu amigo Gilberto Amado, que matara a tiros o poeta Aníbal Teófilo, por discordar de sua opinião em questões literárias. Foi trabalhar em O Paiz, um jornal que considerava como “o guia das aspirações conservadoras do Brasil”.
Em seu novo jornal, João do Rio lançou uma coluna, “Pall-Mall-Rio”, numa referência à rua dos clubes de elite no centro de Londres, assinando como José Antônio José. O nome era “pura imitação dos Pall-Mall de Michel-Georges-Michel, o cronista elegante de Deauville e da Côte d’Azur”, segundo Brito Broca. Retratava a vida mundana na belle époque do Rio. Segundo seu biógrafo, era um verdadeiro inventário da classe dominante durante a guerra europeia: “A alta sociedade simplesmente adorou José Antônio José”.
A popularidade da coluna levou o poeta maranhense Humberto de Campos, seu inimigo, a publicar em O Imparcial uma coluna de sátira com o nome de “Pelle Molle”, assinando João Antonio João, que foi vista como uma reação de inveja e despeito, porque João do Rio o aconselhara a abandonar a poesia por falta de vocação. A malícia destilada por Humberto de Campos atingiu o alvo, causando uma profunda depressão em João do Rio, que parou de escrever a coluna.
Isadora Duncan foi personagem das colunas de João do Rio. Na sua primeira viagem a Paris, anos antes, ficara fascinado com a bailarina: “(…) desde que o pano se ergueu sob um cenário flutuante cor de palha de seda, e essa mulher apareceu, eu tive a sensação de que era arrebatado (…) E o meu arrebatamento era o de toda gente. O entusiasmo de arte a sala do teatro (sic). Paris devia prosternar-se diante da divina Isadora”.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Isadora esteve no Brasil; João do Rio se aproximou dela e correram rumores de terem tido um caso amoroso. Ao comentar com Isadora o seu assumido homossexualismo, ele teria dito: “Je suis très corrompu”. (Era também conhecido como “Joãozinho do Rossio”, numa alusão a uma área da praça Tiradentes do Rio frequentada por homossexuais desde o período da Regência).
Para os contemporâneos, o reconhecimento por João do Rio de ser “très corrompu”, a corrupção a que se referia tinha também outras conotações, além de suas preferências sexuais. Como acontecera quando estava na Gazeta, era acusado de venalidade e de trocar elogios em suas matérias por dinheiro. Ele mandou uma carta desafiando seus acusadores a “apontar uma só das minhas cavações e dos meus elogios pagos”, mas não conseguiu acabar com os rumores.
Sede em chamas
Gilberto Amado comenta a decadência do jornal em 1924:
“O certo é que O Paiz estava morto. Mas não porque a sua colaboração literária tivesse baixado de qualidade ou porque seu noticiário já não fosse tão bem arranjado. O Paiz morrera (…) e quem o matou (…) foi o estado de sítio (imposto pelo presidente Artur Bernardes, que fechou o Correio da Manhã durante vários meses). Com os adversários cancelados da vida cívica, na cadeia, ou de boca tapada pela censura, não tendo a quem responder, não há órgão defensor da situação que se possa aguentar. O Paiz não morreu de morte morrida, mas de morte matada, estrangulado pelas mãos sufocadoras do capangão constitucional do quadriênio. Vivia dos ataques do Correio da Manhã e do Imparcial, de outros periódicos da oposição, que, descompondo o presidente, os ministros e investindo contra o ‘regime’ nos seus violentos artigos de fundo, tópicos vivazes e sueltos ferinos, lhe forneciam assunto, despertavam a verve dos redatores para revides e represálias interessantes ao leitor. O carioca mesmo hostil à situação gostava de correr os olhos em O Paiz, para ver até onde ia o português. A diatribe, o insulto de Edmundo de Bitttencourt dava leitor ao Lage. Bittencourt calado, João Lage morria. E morreu. Devemos ao Bernardes essa perda”. (Citado por Nelson Werneck Sodré.)
Há, certamente, uma grande dose de hipérbole nas lembranças de Gilberto Amado em relação ao fim de O Paiz. Vários anos depois do governo de Artur Bernardes, esse jornal era ainda “o aríete político do Catete”, segundo escreveu Octávio Malta. O jornalista Barreto Leite Filho, em entrevista à Folha de S. Paulo, disse que “O Paiz era uma obra-prima de erudito. Não era muito jornalístico, era mais um jornal assim, vamos dizer, semiliterário; publicava longos artigos, coisas muito leves, era muito bem escrito. Hoje em dia, seria um jornal inconcebível, realmente atrasado, mas, naquela época, publicava artigos notáveis, nacionais e estrangeiros, mas ninguém lia. Tinha três mil exemplares de circulação”.
O jornal deu apoio ao governo de Washington Luís e à candidatura de Júlio Prestes à Presidência da República, em 1930. Foi seu fim. Quando Getúlio Vargas e a Aliança Liberal chegaram ao poder, o jornal foi incendiado. Hélio Silva conta: “O majestoso edifício de O Paiz, construído ao mesmo tempo que a avenida Central, na esquina da rua 7 de Setembro, foi transformado numa imensa fogueira. A multidão invadia os edifícios arrancando os móveis, os livros, as coleções, saqueando tudo e jogando o material ao fogo. O Paiz, que foi durante os 40 anos da República Velha um dos principais jornais do Rio e que refletia os pontos de vista oficiais, quaisquer que eles fossem, foi descartado na virada”. Nessa altura, tinha perdido relevância.
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[Matías M. Molina é autor de Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]