Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Jornalismo como contrapeso do poder

Como enfrentar as máfias com um gravador? Essa é a lição que tenta passar o autor do livro Noticias bajo fuego – Sombras e intrigas del poder real en la Argentina, que acaba de ser lançado em Buenos Aires. Há um duplo sentido no título. O substantivo “notícias” como símbolo do jornalismo e o nome da newsmagazine número 1 da Argentina, de nome Noticias, da qual trata o texto. Com vendas incomparavelmente menores que as da brasileira Veja, poderia se dizer que o semanário argentino é equivalente na sua influência na política nacional.

Em suas duas décadas, a revista Noticias abarca assuntos variados, desde celebridades até esportes, saúde e literatura, gastronomia e economia. O livro de González relata, com apenas um par de exceções, as pressões sofridas pela direção e a editoria de política. Há um motivo: “Entendemos que uma newsmagazine deve funcionar como um contrapeso do poder”, escreve o autor, que já foi editor de política e, até o ano passado, diretor do semanário.

O livro está cheio de exemplos de como ser um contrapeso do poder, qualquer que seja, exige – na Argentina – um alto preço a pagar. Às vezes, o valor é apenas econômico, devido à ausência de publicidade oficial, por exemplo. Mas nem sempre é assim. “Quantos inimigos temos?”, foi a pergunta que os funcionários da revista fizeram no dia que um deles, o repórter fotográfico José Luis Cabezas, apareceu morto e com seu corpo queimado. A lista era longa.

Como sobreviver sem anúncio oficial

Nos 39 capítulos, há uma relativa ordem cronológica. A história começa com cara de filme de suspense, com a fuga do dono e diretor da revista antecessora, de nome La Semana. Jorge Fontevecchia era procurado pela polícia, participara do governo militar e conseguiu asilo numa embaixada estrangeira. Na trama, ele aparece tentando distrair o inimigo, o argentino-brasileiro Edgardo Martolio, hoje diretor-superintendente da revista Caras (Brasil). Há um outro brasileiro na história, considerado chave para o nascimento da revista: Roberto Civita. Aliás, no livro o fundador de Noticias assegura que a ideia da newsmagazine portenha nasceu em um restaurante paulistano da rua Haddock Lobo.

O livro mistura assuntos publicados na revista Noticias com o back stage da apuração dos fatos, focando sempre os obstáculos. Há anedotas de jornalistas queimando as costas com a bateria de um microfone oculto; secretárias e motoboys da empresa recusando propinas que superavam seus salários, oferecidas em troca de adiantar “o que vai ser a capa”; cronistas mulheres se revelando como lésbicas para não aceitar convites suspeitos do então presidente do país; e fotógrafos tremendo num jatinho no meio da tormenta, viajando atrás da imagem do servidor corrupto na ilha paradisíaca.

Há mortes duvidosas de pessoas que contaram verdades que outros não queriam ver difundidas. E, infelizmente, há o homicídio de um fotógrafo da revista, que antes tinha tirado a foto certa.

Noticias é aquele tipo de mídia na qual muitos gostam de aparecer. Mas a grande maioria dos que aparecem na capa pagaria para apagar seus rostos. Alguns até tentaram, sem sucesso. Os nomes deles aparecem no texto. O livro relata também métodos mais complexos, como quando uma simples produção fotográfica previamente autorizada foi convertida em uma mentira: a história oficial foi que a revista tentava fazer um simulacro de ataque terrorista para provar a insegurança da comunidade judaica.

Gonzáles relata como se faz jornalismo com os telefones grampeados pelo Estado e com o acesso interditado à sede do governo. Dedica muitas páginas também a explicar como é sobreviver sem nenhum anúncio oficial.

Discriminação da publicidade

O leitor vai ser tentado inúmeras vezes a tomar partido, a favor ou contra. Como quando um jornalista, para conseguir a reportagem, convidou à sua residência o filho natural de um presidente e até cozinhou para ele. O jantar serviu para descobrir que o filho bastardo tinha o talento negociador do pai biológico.

Há muitas histórias em primeira pessoa, como o relato do dia que González foi convidado pela ex-esposa do presidente Carlos Menem para assistir, na casa dela, ao filme da autópsia do corpo do filho – segundo a polícia, o rapaz fora morto num acidente; segundo ela, fora um homicídio de caráter político. Gonzáles assistiu ao macabro informe sentado na cama da filha de Menem, rodeado de bichinhos de pelúcia.

Muitas das histórias são apenas de interesse local. Só quem viu uma capa pode ter interesse em saber como foi obtida a foto. Porém, os jornalistas do mundo todo podem sentir a solidão que sentiram seus colegas argentinos nos momentos que puxavam um fio que, embora à vista de muitos, segundo González, ninguém tinha coragem para puxar.

Alguns capítulos falam da sorte que todo jornalista precisa ter a seu lado, como quando a equipe de Noticias foi a única presente no momento da súbita morte do presidente Néstor Kirchner, num canto do planeta, a 2.800 km de Buenos Aires. Outros, do azar, como o relato da publicação de fotos erradas e de e-mails enviados a pessoas que não deveriam tê-los recebido.

A relação com os anunciantes também faz parte do texto, sempre em relação ao poder público. “Noticias é a única mídia no mundo que é considerada a mais influente pelo poder político, porém o mesmo poder se abstém de comunicar qualquer tipo de informação oficial aos cidadãos”, escreve Gonzáles. Dedica muitas páginas ao processo iniciado no ano 2006 contra o Estado argentino por discriminação na distribuição dos anúncios oficiais. Ali descreve a rota jurídica pela qual, curiosamente, a Suprema Corte deu a razão à editora e o governo, mesmo assim, não obedeceu à condenação. Atualmente, o assunto está sendo julgado em fóruns internacionais.

Um olhar diferente

No relato das pressões sofridas pelos distintos poderes, o leitor fica com a sensação de ler a mesma história uma e outra vez. Acho que não é fraqueza literária. É Gustavo González tentando dizer: “Na Argentina, os governos mudam e os problemas da imprensa independente ficam”.

O livro é escrito para argentinos e por isso muitas personagens públicas são apenas mencionadas pelos seus nomes. Mesmo assim, os jornalistas brasileiros podem achar interessante o back stage de algumas produções fotográficas difíceis, conhecer em primeira mão a tensão dos diretores quando precisam escolher entre o direito à intimidade e à liberdade de expressão, participar de situações nas quais as editorias optam por não publicar fatos ou pesquisas e compartilhar a tradição editorial de não permitir a leitura de pessoas de fora antes da publicação. González faz uma análise do valor do off the record e a necessidade que há, às vezes, de desrespeitá-lo. Para os leigos, há um capítulo informativo sobre como se faz a revista e os dez passos de uma matéria de capa.

A revista Noticias tem muitos inimigos, inclusive na própria mídia, ao mesmo tempo que é um dos grandes formadores de jornalistas argentinos. Nesse raio-X da revista mais polêmica do país, teria sido interessante ver como hoje, no staff da mídia mais importante da Argentina (jornais, revistas, TV e jornalismo digital) – entre as associações de jornalistas, nas universidades e outros programas acadêmicos e nas prateleiras das livrarias – há uma grande quantidade de jornalistas que já trabalharam em Noticias. Pessoas de reconhecido nível que, ao menos num período da vida, concordaram com a maneira de fazer jornalismo que González descreve.

Com Noticias bajo fuego, o autor pretende também oferecer um olhar diferente da história argentina recente. Para o leitor brasileiro, pode não ter interesse saber sobre personagens de outro país. Mas o desejo de silenciar a imprensa não conhece fronteiras. O livro mostra qual é o jeito Noticias de enfrentá-lo.

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[Roxana Tabakman é bióloga e jornalista argentina, ex-editora de Medicina da revista Noticias e autora de La Salud en los Medios, Medicina para periodistas – Periodismo para médicos]