Quem viveu a ditadura militar no Brasil sabe o que é censura. Jornais publicavam poemas e receitas de bolo no lugar dos textos cortados pelos censores. Nas redações, temas proibidos estavam nos murais para nenhum jornalista tocar naqueles assuntos. Felizmente isso acabou e o Estado agora é responsável pela garantia da liberdade de expressão.
Mas se a censura oficial deixou de existir, a empresarial cresceu de forma assustadora. Hoje, quem impede o brasileiro de saber muito do que ocorre no país e no mundo são os grandes grupos de comunicação. Mostram um recorte da realidade produzido segundo seus interesses e escondem o que não lhes convém. Como são poucos, com orientações editoriais semelhantes, a diversidade de notícias e de interpretações da realidade desaparecem.
Em política e economia, a prática é diária. Basta ver o alinhamento do noticiário com os partidos conservadores e a exaltação da eficiência do mercado. Na televisão, a censura vai mais longe e chega até ao esporte. De disputas esportivas, quase todas as competições foram sendo transformadas em programas de televisão subordinados aos interesses comerciais das emissoras. Tornaram-se produtos vendidos por clubes e federações às TVs que, em muitos casos, compram e não transmitem os eventos, só para evitar que os concorrentes o façam.
Há um caso exemplar ocorrido em Pernambuco. Enquanto a Rede Globo transmitia para o estado jogos de clubes do Rio ou de São Paulo, a TV Universitária local colocava no ar as partidas do campeonato estadual. Claro que estas despertavam maior interesse, elevando a audiência da emissora. A Globo, sentindo-se incomodada, comprou os direitos de transmissão do campeonato para não transmiti-lo, retirando do torcedor local o direito de ver o seu time jogar.
O exemplo argentino
Quando passamos do regional para o global, a disputa fica ainda mais acirrada, como vimos com o recente duelo travado entre Globo e Record em torno dos jogos Panamericanos de Guadalajara. Salvo em raros momentos, a emissora da família Marinho nunca deixou de ditar a pauta esportiva nacional. Além das transmissões de eventos, seus noticiários foram sempre contaminados por exaustivas coberturas das competições. Quantas vezes o Jornal Nacional dedicou mais tempo à seleção de futebol ou a uma corrida de carros do que a assuntos de relevante interesse político ou social?
Com a ascensão da Record, o quadro mudou. E o Pan do México ficará na história da televisão brasileira como o momento de ruptura do monopólio das transmissões esportivas no país. Se há o lado positivo da entrada de um novo ator em cena, há a constatação de que o direito de ver segue sendo usurpado do telespectador. No caso da Globo, seus decantados “princípios editoriais”, segundo os quais “tudo aquilo que for de interesse público, deve ser publicado, analisado, discutido” foram, outra vez, ignorados. Nos primeiros dias de disputa, o Pan não existiu para a Globo e depois ficou restrito a míseros segundos no ar. Na concepção da emissora, por serem transmitidos pela concorrente, deixaram de ter “interesse público”.
Por outro lado, a Record não fez por menos e, de olho na audiência, em muitos momentos não transmitiu os jogos – e só ela podia fazer isso – para manter no ar sua programação normal. Frustrou inúmeros telespectadores que num domingo foram em busca do Pan e se viram diante do Gugu.
A aplicação das leis de mercado, sem controle, ao mundo da TV é a causa desse desconforto. Não há como mudar a situação sem a interferência do Estado, colocando algumas regras para proteger o telespectador. No caso específico do futebol, o governo argentino resolveu o problema comprando os direitos de transmissão dos jogos do campeonato nacional, passando a transmiti-los em sinal aberto pelo Canal 7, a emissora pública do país. Não é uma boa ideia para começar?
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[Sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão (Summus Editorial)]