José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, por mais de 30 anos foi o todo-poderoso da Rede Globo. É considerado um dos fundadores da TV brasileira moderna, ao lado de Walter Clark. Boni também integrou as áreas de produção, entretenimento e jornalismo e teve papel fundamental no projeto de integração nacional. Se hoje a Globo detém 45% da audiência e 72% do faturamento publicitário das TVs, deve boa parte disso a ele.
Atual diretor da TV Vanguarda, retransmissora da Globo na região do Vale do Paraíba, precisou de quatro meses para colocar em mais de 400 páginas suas memórias profissionais, O Livro do Boni (ed. Casa da Palavra).
Boni, 75, recebeu a Folha em seu escritório no Rio.
“Fica tudo com cara de minissérie”
Como compara a televisão do seu tempo com a de hoje?
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho – Acho que se perdeu muito do espírito artístico da coisa. A TV Globo teve três fases: a primeira, a minha, em que o artístico comandava a empresa. Depois, a da Marluce [Dias, 1997-2002], em que o administrativo comandava. Hoje temos a fase do Octavio Florisbal, que ao menos é mais saudável, na qual o comercial comanda. No meu entender, a finalidade última da TV é artística. Não pode estar a serviço do mercado.
As novelas estão em crise.
J.B.O.S. – Antes havia mais densidade: diálogos maiores, interpretação melhor, direção mais sofisticada, menos gritos. Era menos superficial.
O futuro estaria nas sitcoms?
J.B.O.S. – A novela não se exauriu. O problema é que hoje há uma repetição exaustiva da fórmula. E se produz demais. Fica tudo com cara de minissérie. A sitcom é muito difícil de acertar, a gente não domina.
“Triturei minha vida pessoal trabalhando”
A grade continua parecida com a que você criou.
J.B.O.S. – Essa grade já foi pro espaço. O modelo que a gente segue está exaurido.
E as Olimpíadas na Record?
J.B.O.S. – Do ponto vista de audiência, não será importante. Mas do prestígio, sim. A emissora líder não pode perder isso.
O que acha de programas como o Chaves?
J.B.O.S. – Eu não teria na Globo, mas não acho que os Trapalhões sejam diferentes.
E o BBB?
J.B.O.S. – Eu teria escondido, embora o Boninho faça o melhor BBB do mundo inteiro. Mas eu não quero ouvir aquele texto, em dois minutos tenho vontade de quebrar a TV.
E o CQC?
J.B.O.S. – Eles gritam muito, se “paniquerizaram”.
Como foi a relação da Globo com o governo militar?
J.B.O.S. – Dr. Roberto ficou entre a cruz e a espada. Ideologicamente, sempre apoiou a economia de mercado. Gostou que os militares vieram para evitar o comunismo. Mas, depois do AI-5, viu que aquilo ia demorar e ficou aflito. Passou de poderoso para ameaçado.
Qual é o lado B do Boni?
J.B.O.S. – Triturei minha vida pessoal trabalhando. Das três famílias que tive, pelo menos duas botei no liquidificador.
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Obra elucida polêmicas do empresário
A autobiografia é um gênero curioso. O autor coloca sua visão histórica dos fatos em uma inevitável jornada pessoal. Mas é preciso ser cuidadoso com a autorreferência.
Boni não ultrapassa essa barreira, e a impressão é de que o livro ficaria muito mais rico se fosse confiado a um autor que investigasse o mundo a seu redor e o entrevistasse exaustivamente.
Sobram homenagens a amigos e parceiros de trabalho. E é óbvio que Boni sabe muito mais do que torna público. Em suma, falta um lado B.
Ainda assim, a obra tem méritos. Já nasce obrigatória para interessados em marketing, sobretudo pela descrição da montagem do modelo de negócios da Globo.
E há vários conceitos sugeridos, como o de que a televisão constitui rigorosamente um veículo publicitário.
Mas é na fogueira das vaidades que o livro diverte, como na menção às loucuras de Dercy ou à dificuldade em lidar com jabás de Chacrinha.
A consolidação da sociedade midiática
Intrigantes são as passagens sobre a tentativa de fraudar o resultado de um Festival de Música da Globo ou a negociação com bicheiros das escolas de samba para criar uma liga que fizesse frente ao arqui-inimigo Leonel Brizola.
De resto, elucida ponto nevrálgico sobre o envolvimento da emissora com os militares. A Globo teria negligenciado a cobertura das Diretas Já em 84 sob ameaça de perder a concessão, mas também sofrido com censuras inexplicáveis, como a imposta às minissaias das chacretes.
E mostra a crítica de Boni ao processo de tomada de decisão da polêmica edição do debate entre Collor e Lula.
O prefácio é do italiano Domenico De Masi, o papa do “ócio criativo” e seu amigo.
E ele acerta ao dizer que não se trata apenas de um depoimento profissional, mas de um retrato da história do Brasil pós-industrialização e da consolidação da sociedade midiática por aqui.
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[Morris Kachani é jornalista da Folha de S.Paulo]