“1. ‘As yields das obrigações espanholas a 10 anos encostaram aos 6,5%, e o spread ou diferencial face às bunds alemãs, que servem de referência para os investidores, atingiu os 462 pontos base, acima do limiar de 450 pontos exigidos pela LCH Clearnet’ (PÚBLICO, Destaque de 17 de Novembro). ‘(…) Não haverá condições para incluírem no rácio Core Tier 1, que terá de chegar a 9% no final do ano, os resultados que poderão vir a exigir, ou não, necessidades adicionais de capital’ (outro texto do mesmo Destaque). São dois exemplos recentes, e nem sequer dos mais agressivos, que desafiarão a boa compreensão das notícias por muitos leitores menos familiarizados com a linguagem técnica utilizada. Em ambos os casos, o significado exacto das frases citadas não pode ser alcançado pelo contexto em que estão inseridas.
‘Informar é comunicar e fazer compreender’, lê-se no Livro de Estilo deste jornal, para defender que a clareza é um valor essencial do jornalismo de qualidade. Notícias que não tornem inteligível para a generalidade dos leitores o que relatam, qualquer que seja a complexidade do assunto, são notícias falhadas.
Citei dois exemplos da área da informação financeira por serem dos que terão maior visibilidade num tempo em que a turbulência dos chamados ‘mercados’ mais interfere na vida de todos, levando muitos leitores sem conhecimentos especializados neste domínio a procurar compreender todos os dados das notícias que lhes são fornecidas. É verdade, e é um mérito que deve ser reconhecido ao PÚBLICO, que se nota uma preocupação dos jornalistas da área da Economia em descodificar com frequência conceitos, expressões ou termos estrangeiros de uso menos corrente, através de explicações colocadas nos textos entre parênteses, ou de peças destinadas a esclarecê-los. As reclamações que me chegam indicam, porém, que deveriam fazê-lo de forma sistemática — é errado partir do princípio que o leitor viu e recorda uma explicação anteriormente publicada —, ou mesmo obrigatória, quando, como hoje acontece muitas vezes por razões óbvias, os seus textos são chamados a integrar a área de Destaque que o jornal dedica aos temas de interesse geral mais actuais.
2. Questão diferente, mas relacionada com a anterior, é a do recurso, que muitos leitores consideram excessivo, ao uso de vocábulos estrangeiros nas páginas do jornal. Dois exemplos, de entre queixas que me chegaram: ‘Porque insiste o PÚBLICO em usar termos em inglês, até mesmo para descrever o que é perfeitamente alcançável em português?’ (Carlos Coimbra, a propósito de um título do Desporto em que se falava de ‘final four’ em vez de meias-finais de uma competição). ‘Não consigo compreender como é tão necessário recorrer a estrangeirismos (…) para expor ideias e opiniões. (…) Compro o jornal e não percebo o que lá vem escrito’ (Manuel Dinis, agastado com o uso de expressões como opting out ou level playing field no texto de um colunista).
O Livro de Estilo do PÚBLICO recomenda ‘bom gosto’ e ‘bom senso’ no uso de estrangeirismos. Segue a lição do filólogo Rodrigues Lapa, para quem o estrangeirismo era ‘um fenómeno natural’ — através do qual os povos adoptam, ‘com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem que lhes não são próprias’ —, e até vantajoso para a comunicação, desde que ‘não exceda os limites do razoável e não afecte a própria essência do idioma nacional’. O autor da Estilística da Língua Portuguesa defendia também que, ‘quando o estrangeirismo assentou já raízes na língua nacional’, se deveria ‘vesti-lo à portuguesa’ (a este respeito, remeto os interessados para uma mensagem de José Mário Costa, disponível emblogues.publico.pt/provedordoleitor, em que este responsável pelo site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa explica, à luz destes princípios e a propósito do tema tratado na minha crónica anterior — o uso do verbo’tuitar’ —, as regras recomendadas para o aportuguesamento ou não de estrangeirismos que já entraram no nosso vocabulário comum).
O jornal deve guiar-se por critérios claros e coerentes que assegurem na medida do possível a uniformização da grafia dos termos de origem estrangeira. O Livro de Estilo aceita numerosos estrangeirismos já acolhidos na nossa língua (numa lista alfabética que vai de apartheid a zapping), estabelecendo que devem ser sempre grafados em itálico (abre excepção para alguns termos ‘recorrentes’ sem ‘correspondente em português’, como design ou jazz).
Julgo que os primeiros critérios a observar são o da compreensão (um termo estrangeiro grafado na língua original deve ser de uso corrente, sendo preferível em caso contrário recorrer-se à tradução ou, quando necessário, à explicação do seu significado) e o da necessidade ou utilidade (‘não faz sentido’ escrevertsunami em vez de maremoto, defende por exemplo o leitor Manuel Pinheiro, que estende a sua crítica ao uso de outros termos que vai encontrando regularmente nestas páginas, como por exemplo upgrade). Convencido de que têm razão os leitores que criticam o excesso de estrangeirismos, Aurélio Moreira, da equipa de revisores do PÚBLICO, critica por seu lado que se escreva checkpoint em vez de posto de controlo, ou sniper em vez de atirador furtivo.
3. A rapidez com que palavras estrangeiras entram hoje no nosso vocabulário corrente desactualiza em pouco tempo qualquer lista normativa existente numa redacção, obrigando muitas vezes a decidir caso a caso a utilização do vocábulo original, o seu aportuguesamento ou uma possível tradução. A directora doPÚBLICO, Bárbara Reis, explica que essas situações são ‘muito debatidas na redacção’, mas ‘não há, depois, um processo de fixação’. Penso, no entanto, que seria útil à coerência da escrita no jornal que esse processo fosse levado a cabo periodicamente, actualizando-se a lista de estrangeirismos e neologismos contemplados no Livro de Estilo.
Esse esforço seria especialmente útil no que respeita à torrencial entrada no vocabulário comum de termos ligados ao universo dos computadores e da Internet. Em relação a cada um deles, deveria ser estabelecido quais terão de ser traduzidos (como server para servidor, para não falar de aberrações como ‘deletar’ em vez de apagar), quais deverão manter a grafia inglesa (certamente nomes próprios como Twitter e Facebook, mas também expressões como online?), quais os que devem ser considerados neologismos já perfeitamente aportuguesados (como blogue e talvez clicar), e quais os casos em que deva ou não aceitar-se a convivência do estrangeirismo com a forma portuguesa (browser e navegador, link e hiperligação, site e sítio?). Devendo ter-se em conta que a adaptação gráfica à fonética portuguesa de neologismos importados de outras línguas tende a ser mais lenta e conservadora no português europeu do que na sua variante americana (‘saite’, ‘tuitar’, etc.).
Não poderia o PÚBLICO dotar-se de um ‘glossário da Internet’ que garantisse a normalização linguística e gráfica desta terminologia?
…ou antes pelo contrário
Leitor do PÚBLICO ‘desde a sua aparição’, Alexandre Solleiro ‘não esperava, aos 84 anos, ler num jornal de referência’ — na última edição da Pública (20.11) — ‘a resposta que a Senhora Raquel Freire, cineasta de 39 anos’, deu a uma pergunta constante do inquérito criado para a revista dominical por Miguel Esteves Cardoso, Pedro Mexia e José Diogo Quintela. Explicou tratar-se da resposta à pergunta ‘Sem ser essa mariquice de morrer a dormir, como é que preferia morrer?’.
Fui ler. A cineasta inquirida satisfizera nestes termos a curiosidade dos inquiridores: ‘Os maricas que conheço gostariam de morrer como eu: a foder’. Incomodado pela preferência manifestada ou pela palavra utilizada, possivelmente por ambas, o leitor questionou a transcrição da resposta de Raquel Freire num ‘jornal como o PÚBLICO’.
Joana Amaral Cardoso, subeditora da Pública, explica que a publicação da frase ‘foi devidamente ponderada’ e ‘discutida (…) com membros da direcção editorial’, por se admitir — como comprova a reclamação que recebi — que os ‘termos utilizados (…) pudessem ferir a susceptibilidade de alguns leitores’. Sendo o inquérito em causa composto por ‘questões em tom provocador ou mesmo desconcertante’, marcadas por ‘alguma irreverência’,’entendeu-se que [a cineasta] estava a reagir, de forma pessoal, à provocação que a própria pergunta encerra em si, pela terminologia que utiliza’. Por isso, e por ‘respeito editorial’ pelas respostas recebidas, se decidiu publicar a frase questionada.
Concordo com a decisão e nem me parece admissível que pudesse ter sido outra. Reconhecendo que a publicação de palavras ou expressões que os especialistas da língua designam por vulgarismos chocará sempre alguns leitores, gostaria de enquadrar o caso nos valores que devem reger o bom jornalismo e que incluem, naturalmente, a civilidade.
As regras em vigor no PÚBLICO (que por vezes são indevidamente contornadas) indicam, e bem, que o calão (‘linguagem grosseira ou ordinária’, segundo o Livro de Estilo) ‘só é admissível se for essencial à fidelidade da informação — e após consulta ao editor’. Ou seja, o seu uso deve ser reprovado quando é gratuito, e consentido nos raros casos em que é exigido para a boa compreensão do que se relata ou motivado por critérios exigentes de relevância e respeito pela verdade. As mesmas regras estabelecem, mais uma vez bem, que nesses casos deve ser evitado o recurso hipócrita às reticências (se se justifica publicar a palavra ‘foder’, não se escreve ‘f…’).
Isto no que se refere aos textos de jornalistas e colaboradores. Neste caso, a questão era outra: tratava-se de respeitar ou censurar a opinião e expressão livres de alguém que aceitara responder a um inquérito que partira da iniciativa do próprio jornal. A civilidade aconselhava que se fizesse o que se fez. Independentemente do que se pense sobre o inquérito da Pública, quem faz perguntas provocadoras tem de aceitar respostas provocantes.