Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Visão enrugada da saúde

Uma semana após os sangrentos atentados de Madri, a revista Veja voltou a colocar na capa uma matéria de medicina – um signo destes tempos em que o bem-estar pessoal parece passar por cima do planetário, como se isso fosse possível.

Veja manteve sua linha editorial – baseada em pesquisas de mercado – de dar a máxima importância a matérias de saúde. Na mesma semana do atentado, a ‘Carta ao Leitor’ da revista não estava dedicada às vítimas da tragédia, mas à cirurgia de estômago de um obeso. A análise da doença global que é o terrorismo ocupou 11 páginas (incluindo a de um ensaio sobre a morte). Na mesma edição, a revista tratou de outras 13 questões médicas. Elas estavam distribuídas assim:

** 9 páginas sobre o homem que perdeu metade do peso;

** 1 página sobre cápsulas antienvelhecimento;

** 2 páginas sobre um medicamento para a pressão e o colesterol altos;

** 1 página e 1/3 – da seção Guia – com informação sobre anestesia, acupuntura, aftas, asma e tabagismo materno.

O que para alguns parece um excesso de matérias médicas numa semana de atualidade quente pode dever-se, na realidade, a uma questão técnica, dado que os fechamentos escalonados não permitem reação com a rapidez desejada. Mas, na semana seguinte, a tendência se manteve. Frente a 5 páginas de noticias internacionais, houve:

** 8 páginas sobre o uso de células-tronco em pesquisas;

** 1 página sobre a situação dos médicos no Brasil;

** 1 página sobre odontologia estética.

Uma cobertura tão ampla de temas de saúde gera exigências de qualidade para a revista mais vendida do Brasil. Até o nível de design é desigual. A matéria na qual uma jornalista acompanhou a luta de um empresário contra os quilos é, em minha opinião, excelente. Tem detalhes muito bem pensados, como a imagem da pessoa ao lado de 13 sacos de arroz, em representação dos quilos que tinha perdido, suas fotos de juventude, deixando claro que uma história assim deve interessar até ao leitor mais magro e atlético.

A matéria ‘Na versão dois em um’, pelo contrário, merece ser guardada pelos professores de Jornalismo para destacar, com ajuda dela, o desafio de ilustrar matérias sobre temas que não se pode ver, como a pressão alta ou o colesterol em excesso. Imagens de arquivo, como as utilizadas na matéria, foram usadas até a exaustão, e carecem por completo de apelo emocional. E, dado o caráter positivo do texto, mostrar os medicamentos nas caixas dá à reportagem um enfoque de publicidade nada conveniente para a credibilidade.

E o texto? Apresenta um remédio novo, combinação de duas drogas que já existiam, para a terapia simultânea de colesterol e pressão altos. Na duvida de informar mais, ou melhor, a jornalista escolheu a pior das opções. Mexe em vários aspectos, sem que nenhum deles fique claro. A ênfase colocada na possibilidade de facilitar a terapia não está acompanhada de data que sustente essa afirmação. O nó da questão provavelmente é o que se pode ler na antepenúltima linha da matéria: é uma questão de patentes, o que poderia ter sido informado nas páginas de economia.

Na metade do texto se cumpre outro dos objetivos: sugerir, mediante uma única pesquisa, que uma das drogas que compõem a fórmula é melhor do que a usada pela concorrência. Finalmente, introduz-se uma interessante polêmica médica: onde fica a linha que separa sadios de doentes, ou seja, a partir de que nível de colesterol ruim no sangue é necessário tomar drogas para reduzi-lo? Nessa discussão basicamente há três correntes: os médicos agressivos, que defendem que menos é sempre melhor e recomendam a redução drástica mediante o uso de drogas para minimizar os riscos; os médicos moderados, que aceitam o risco de níveis maiores de colesterol sem receitar remédios aos pacientes, para não agredir o corpo com substâncias que podem ter efeitos colaterais; e os médicos desconfiados, que preferem ver nesses remédios a vontade do mercado e considerar os doentes como pessoas que, até ontem, eram avaliadas como sadias.

Poder perigoso

Outra matéria, ‘O tira-rugas’, mostra o que acontece quando assuntos médicos são tratados com ligeireza numa matéria de beleza. A matéria propõe uma terapia de três cápsulas semanais de isotreonina para atenuar rugas, reduzir poros abertos e melhorar a textura da pele. A jornalista faz referência aos efeitos colaterais da droga (alterações no fígado, malformação do feto caso a usuária esteja grávida), mas afirma: ‘Estas reações adversas não ameaçam quem usa a isotreonina para rejuvenescer a pele’. E acrescenta quatro linhas depois: ‘Nenhum dermatologista sério receita a substância sem submeter o paciente a exame de sangue’. Não é contraditório? Será que não sugere aos leitores que peçam a receita a um dermatologista pouco sério, ou comprem a droga no mercado negro, para não ter cuidados segundo ela desnecessários?

Na edição da semana seguinte, a carta de uma profissional da Agência de Vigilância Sanitária alerta sobre o que a matéria teria que ter alertado. Para muitas leitoras, que não lêem a revista na semana seguinte, tarde demais.

Existe consenso entre os médicos de que, hoje, a principal fonte de informação médica da população é a mídia. E, pelo poder multiplicador que tem, é talvez uma das melhores ferramentas de saúde pública. Mas, por esse mesmo poder, os erros, exageros, ocultamentos e outras formas de faltar a verdade são extremamente perigosos. Jornalistas e médicos deveriam se unir para evitá-los, para que a leitura da mídia não seja considerada um novo fator de risco.

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Bióloga e jornalista especializada em saúde