Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O papel da reportagem no futuro da imprensa

Eu me recuso a falar de novo das estripulias com empregos públicos acumulados, malfeitos e maracutaias de Carlos Lupi, o pândego ministro do Trabalho, que continuava no cargo até o momento em que comecei a escrever este texto, contra a vontade da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.

Pela primeira vez na história, a Comissão de Ética pede a demissão de um ministro. É problema da Dilma. Nem eu nem os leitores podemos fazer nada. Virou notícia enguiçada, como costuma dizer o Tutty Vasques. Vamos mudar de assunto.

Prefiro falar do meu tema predileto: a boa e velha reportagem, cuja morte andou sendo anunciada faz tempo, e não só sobrevive como parece ter voltado à moda, pelo menos nas dezenas de debates de que participei este ano em vários cantos do país.

Só hoje [quinta, 1/12], são mais dois, um à tarde e outro à noite. O evento da noite, abertura da série “Repórter”, no Itaú Cultural, é especial para mim porque reencontrarei no palco dois dos maiores mestres deste ofício: Audálio Dantas, que será homenageado por seus 60 anos de atividade na profissão e aproximadamente 80 de idade, e José Hamilton Ribeiro, que anda aí por perto em rodagem nas estradas da vida. Ambos trabalharam na revista Realidade, a mais importante publicação brasileira de todos os tempos.

Sou um pouco mais recente do que eles e tive a sorte de tê-los como mestres e exemplos no trabalho de repórter. Os dois continuam em plena atividade, trabalhando como meninos encantados com o que fazem. Audálio e Zé Hamilton são sobreviventes de uma geração brilhante, que surgiu no começo da segunda metade do século passado, antes que os americanos começassem a falar em new journalism.

Entre mil outras atividades como jornalista, escritor e ativista cultural, ex-líder sindical e deputado federal, Audálio é o editor da excelente revista Negócios da Comunicação. Zé Hamilton continua brilhando como a grande estrela do programa Globo Rural, onde trabalhei com ele por um breve período nos anos 1980.

Boas histórias

Para vocês verem como são as coisas e porque não devemos nunca desanimar. No começo daquela década, Zé e eu fomos convidados por Alberto Dines para participar de um debate na ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio, cujo tema era “A reportagem está morrendo?”.

Quase morremos os dois na viagem de volta porque ele cismou de ir de carro, estava chovendo muito e eu sou um péssimo motorista. Uns 30 anos depois, fomos convidados para participar de um debate sobre o mesmíssimo tema na PUC carioca: “A reportagem está morrendo?”.

Continuávamos vivos, como pudemos provar, nós dois e a reportagem, embora tenhamos perdido muito espaço nos últimos anos dominados pelo jornalismo fast-food, mais voltado ao entretenimento e ao denuncismo de prato feito, com honrosas e cada vez mais raras exceções.

Como nós três, além de milhares de reportagens já escrevemos também vários livros, semanas atrás Audálio e eu fomos convidados a participar de um debate sobre “Jornalismo Literário” na Feira Internacional do Livro de Alagoas, em que o amigo, filho da terra de Graciliano Ramos, também foi homenageado.

Estava lá também o Fernando Morais, grande biógrafo brasileiro, e nós três acabamos falando mais ou menos a mesma coisa: os livros foram mera consequência do nosso trabalho como repórteres, não que tenhamos trocado de profissão para ser escritores.

Jornalismo literário, jornalismo investigativo, jornalismo eletrônico, jornalismo isto e aquilo, muitas denominações foram surgindo até aparecer a internet, que revolucionou tudo, mas a natureza da profissão não mudou: olhos e ouvidos bem abertos, precisamos sair às ruas em busca de novidades para contar e explicar o que está acontecendo. Em qualquer plataforma, como se diz hoje, somos aqueles que precisamos descobrir, apurar e contar as histórias do nosso tempo.

É o produto deste trabalho que pode diferenciar um veículo do outro: contar uma novidade, uma boa história que os concorrentes não têm. Dá muito trabalho, às vezes você corre riscos, tem que brigar da pauta à edição, mas vale a pena.

Fé no futuro

Notícia virou commodity, todo mundo publica a mesma matéria-prima produzida por qualquer pessoa, fica quase tudo igual, dos portais da internet ao noticiário da noite na TV, das manchetes dos jornais do dia seguinte às matérias das revistas do fim de semana. Costuma me dar a impressão de que já vi ou ouvi aquilo em algum lugar.

Só os repórteres de ofício podem surpreender seus chefes, leitores, ouvintes e telespectadores com algo original que ninguém contou antes, de preferência com um texto bem escrito, que não precisa necessariamente ser literário.

Nos últimos anos, quem tem feito isto com maestria, consagrada como melhor repórter da sua geração, é a superpremiada Eliane Brum. Não por acaso, é ela quem está organizando, como curadora, o encontro “Repórter” no Itaú Cultural. Eliane e Claudiney Ferreira, gerente do Núcleo de Audiovisual e Literatura do Itaú Cultural, também participarão do bate-papo, que será gravado para o programa “Jogo de Ideias”.

Vou dizer que é a reportagem, antes dada como morta, que pode garantir o futuro da imprensa de papel. Não é a internet que ameaça acabar com jornais e revistas como leio tanto por aí. É a falta de tesão, a falta de ousadia, a falta de capacidade de se reinventar para sobreviver nesta selva em que agora somos todos emissores e receptores de informações.

Estamos assistindo não a um assassinato, mas ao suicídio de um ramo da imprensa, numa semana em que a Folha de S.Paulo, o maior jornal do país, dispensou 40 profissionais, entre eles repórteres premiados e respeitados como Elvira Lobato, Josias de Souza e Gilberto Dimenstein, e a Editora Globo começa um processo de demissões em cadeia nas suas redações. Aí não dá.

Preciso parar por aqui porque daqui a pouco participarei, junto com outro sobrevivente da melhor qualidade, o Caco Barcelos, do projeto “Memória do Esporte Olímpico Brasileiro” promovido pela ESPN e Instituto de Políticas Relacionais para um grupo de documentaristas em evento fechado, no prédio da Cinemateca.

O dia promete ser longo e as conversas muito agradáveis. Continuo gostando muito de ser repórter e tenho fé no futuro da nossa profissão. Só depende de nós. Espaço a gente sempre acaba encontrando.

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[Ricardo Kotscho é jornalista]