Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um mineiro bom de papo

Nelson Rodrigues, que, por pura perversidade, batizou sua peça Bonitinha, mas Ordinária de Otto Lara Resende, dizia do amigo que o mineiro era tão bom de papo que deveriam colocar um taquígrafo atrás dele e depois vender suas anotações em uma loja de frases. Não há como discordar do dramaturgo quando se lê as cartas que o jornalista e escritor Otto Lara Resende (1922-1992) enviou ao amigo Fernando Sabino, agora reunidas no livroRio É Tão Longe, que chega na quarta-feira (30/11) às livrarias junto a uma seleção de crônicas dos anos 1990, Bom Dia para Nascer, feita por Humberto Werneck, colunista do Estado. O jornalista e escritor, também mineiro, é o responsável pela introdução e notas que acompanham as cartas a Sabino e também organizador da coleção dedicada a Otto pela Companhia das Letras, agora reeditada com títulos inéditos.

Werneck lembra, na introdução de O Rio É Tão Longe, que Otto Lara Resende adorava ler cartas, desconfiando que a correspondência de Flaubert fosse até mais popular que Madame Bovary. Depois que Fernando Sabino lançou Cartas na Mesa (Record, 2002), revelando parte de sua correspondência com Otto, era de se esperar a sequência desse romance epistolar entre dois dos “quatro cavaleiros do Apocalipse íntimo” – como batizou Drummond o quarteto de companheiros mineiros Otto, Sabino, Paulo Mendes Campos e o psicanalista Hélio Pellegrino. Otto e Sabino foram amigos por mais de meio século. Conheceram-se na juventude, ainda em Minas, e não se largaram mais. Sabino publicou dois livros seus pela Editora do Autor, fundada por ele, Rubem Braga e Walter Acosta em 1960: o romance O Braço Direito e o livro de contos e novelas O Retrato na Gaveta.

266 crônicas, algumas comoventes

Poderia ter publicado ainda outros, não fosse Otto um bibliófobo (ele tinha horror de se ver exposto em livrarias), como o definiu o amigo Pellegrino. Sabino até propôs editar as cartas, mas, segundo Werneck, a ideia não o animou, apresentando como justificativa a correspondência trocada entre Henry Miller e Lawrence Durrell, que o deixou “arrasado”. Sem motivo. O Rio É Tão Longe pode ser lido como o “melhor Otto”, aposta Werneck. Nele, o adido cultural da embaixada do Brasil em Bruxelas, entre 1957 e 1959, conta casos inacreditáveis que testemunhou em sua temporada belga (além da lisboeta, nos anos 1960), reclamando, como sempre, da falta de resposta dos missivistas Fernando, Paulo e Hélio. “Estou convencido de que sou o último cidadão que ainda se dedica a este gênero obsoleto que é o epistolar”, reclamava.

As reclamações, aliás, começam já em 1957, ano em que publica o polêmico Boca do Inferno, livro de contos que provocou polêmica e deixou horrorizado seu pai Antonio, representante do meio católico conservador mineiro, por mostrar que o mundo infantil, longe de ficar perto do céu, estava mais próximo da morada de Lúcifer. Até o fim Otto desconfiou de que algumas crianças traziam a marca da maldade impressa na alma, como o do garoto do conto Gato Gato Gato, que mata a tijoladas um pobre felino que dorme junto a um tanque. Sem ser propriamente um jansenista, Otto parecia mais próximo de outro católico, o francês Georges Bernanos, embora posasse de existencialista e imprecasse contra o reino dos céus (ele implicava com o regime monárquico celeste, dizendo que a República não havia chegado lá).

As cartas foram até fáceis de editar, mas as crônicas deram um trabalho enorme a Werneck, que teve de reler as 508 que Otto escreveu. Na edição anterior dessas crônicas, publicadas na Folha de S. Paulo entre 1991 e 1992, o editor Matinas Suzuki Jr. havia escolhido 192 delas. A seleção de Werneck tem 74 a mais. São 266 crônicas, entre elas algumas comoventes, como a história do primeiro salário do escritor, aos 16 anos, que um bueiro levou num dia de chuva violenta.

O “comportadinho das palavras”

Para Werneck, o livro das cartas revela um Otto bem diferente do ficcionista sombrio, de alma barroca – afinal, era um homem de São João del-Rei, “o fundo da Idade Média”, segundo ele –, que escrevia contos quase camusianos como O Porão, sobre um garoto que mata o amigo com um canivete sem motivo aparente, como se fosse um pequeno Meursault. “O Otto ficcionista é um Otto nublado, agoniado, como o de Boca do Inferno e O Braço Direito, mas o cronista é leve”, compara Werneck, que conheceu Otto ao traçar um perfil do escritor para uma revista.

De fato, numa das primeiras crônicas, ao falar das lágrimas dos retirantes de Portinari, provoca o riso lembrando que, durante um almoço na casa do pintor no bairro de Cosme Velho, no Rio, perguntou a ele se aquele choro todo não encerrava uma contradição, já que os retirantes fugiam da seca. Afinal, nem o Fabiano do Graciliano nem o Severino de João Cabral choravam – primeiro porque homem não chora, ainda mais em terra estorricada, como acentua Otto na crônica.

Já os contos de Boca de Inferno não fizeram ninguém rir. É possível que seja inventada a história que contam sobre a reação de Otto às críticas – ele teria recolhido os exemplares que encontrava pela frente nas livrarias –, mas, numa carta a Sabino, ele abusa dos palavrões que conhece para xingar o crítico Wilson Martins, que demoliu o livro. Ao se demitir da revista Manchete, da qual foi diretor, e embarcar para a Bélgica, onde iria exercer as funções de adido cultural, Otto escapou de ver a porta de seu apartamento carioca coberta de fezes, lembra Werneck. Obra da filial carioca da TFM (Tradicional Família Mineira), garantiu Autran Dourado.

Animado com as cartas de Otto a Sabino, Werneck gostaria de ver publicadas a correspondência que o escritor mineiro trocou com o amigo Dalton Trevisan, mas, duvida que o autor de Desgracida libere. Na segunda parte desse livro há uma carta em que o curitibano fala mal de Guimarães Rosa, descrevendo-o como um autor “menor”, o “comportadinho das palavras”. Vale esperar a reposta de Otto.

Cartas marcadas

“Comecei a ficar lúcido, de uma lucidez demoníaca… tudo começou a ruir, se eu não seguro um último caibro e se Nossa Senhora não ajuda, a casa ia por água abaixo. No seu caso, imagino os problemas que você deve ter, sofro por eles, choro sobre eles, espero que você, que é melhor do que eu, muito melhor, receba a graça de resolvê-los bem, certo.”

“Vou estudar e analisar essa absorção dos valores… imperiais pelo cristianismo, ou melhor, como dizia Bernanos, pela gente da Igreja. Pra tudo tem explicação psicanalítica. Você já imaginou Jesus Cristo visitando o Vaticano, ou querendo entrar na igreja de São Marcos, em Veneza, no meio dos americanos de máquina a tiracolo? Aposto como seria barrado, aquele sujeito…”

“Se vivo fosse, o Lúcio Cardoso faria hoje 55 anos. Ele dizia que tinha nascido a 13 de agosto de 1913, mas era papo furado, pra parecer mais sinistro. Ontem, de madrugada, à volta das duas horas, estava papeando com um amigo em casa – e comecei a falar do Lúcio, lembrei aquela história da casa em Ipanema que ele arranjou para eu morar, da história do meu duplo que chegara antes…”

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[Antonio Gonçalves Filho é jornalista do Estado de S.Paulo]