Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A notícia, o circo e a crise

Todo circo proporciona à sua plateia o maior espetáculo da Terra. O superlativo está intrinsecamente associado a essa atividade, assim como a afluência das crianças. Um mágico nunca pode ser um impostor; é impossível acusar um palhaço de exercício ilegal da profissão. Até o humorista triste, quando interrompe a apresentação e admite não ter graça, é ovacionado; o ilusionista não consegue desacreditar o público ao revelar seus segredos, pois mesmo isso será visto como um segredo de mágico. No circo não existe mentira, pois não existe a presunção da verdade, e o pagante sai tão mais satisfeito quanto mais tenha sido enganado.

Por outro lado, a imprensa objetivista não tem graça. Ela dá o contrário do que a plateia espera receber e depende de manter a audiência sob a crença de que recebeu o que esperava. Na proporção direta da visibilidade que lhe é concedida pelo empresário, o jornalista faz as vezes de um palhaço triste, enrustido e triste por ser enrustido. A notícia vende a mentira como se fosse a verdade, como se fosse a mentira, como se… e o ciclo infinito tem o objetivo de impedir que a plateia saia, satisfeita ou não, de sob a tenda.

O mobilismo dialético se exemplifica pelos prazos de validade em que se constitui a lógica do furo. Qualquer que seja o evento, ele nunca é antigo ou ultrapassado até que tenha sido repercutido nos cabeçalhos. E assim que a repercussão se dá, por mais recente que seja o fato, recebe imediatamente a pecha de antiquado, juntamente com a serventia de ter sua versão impressa embalando o peixe do dia seguinte. O jornal é o tempo presente, ou melhor, apenas o jornal é o presente. Mas tudo isso torna-se ainda mais acachapante no seio de um povo globalmente estigmatizado, pois aqui a alienação transgride as expectativas que regulam a construção do ego discursivo.

Objeto extralinguístico

É difícil adjetivar a impositiva conveniência de comentar a semântica deste pronome pessoal. Pois em seu sentido mais prototípico – porque mesmo uma palavra tão básica pode ser usada para muitas outras coisas – o “eu” adquire um valor distinto cada vez que uma pessoa diferente o diga.

Se, e somente se, o marquês de Maricá dizia “Eu sou Mariano José Pereira da Fonseca”, era possível substituir o pronome “eu” da frase, supostamente também muito utilizado por Mariano, pelo título de marquês de Maricá. O que não encerra a necessidade de atender a observação do leitor impaciente na sua eterna busca por exceções. Sim. Se, dentre outras orientações parlamentadas, explicasse, ao empregado da fazenda, como ordenhar a vaca às 6 horas, o Marques poderia dizer: “Então, às 6 horas, eu ordenho a vaca.” Onde “eu ordenho” teria o sentido de “tu ordenhas”. Mas, não obstante a perspicácia do leitor impaciente, o primeiro sentido mencionado continua a ser o prototípico. Ou seja, aquele em que, exceto por acréscimos ao contexto, governará a interpretação do uso do pronome. De fato, não é totalmente clara, em todos os casos, a distinção entre denotação e conotação, regra e exceção linguística. Contudo, infelizmente a todos que desejem mais precisão sobre o assunto, resta a recomendação de procurá-la fora deste texto.

Assim, o pronome pessoal participa daquilo que os semanticistas e filósofos da linguagem chamam de deixis, a que o vulgo sempre bem instruído chama de o “aqui e agora”. Enquanto o sentido de muitas palavras, notadamente verbos e substantivos, é caracterizado por outras – o homem é um bípede implume; corre quem se desloca com pressa – o sentido das palavras dêiticas, notadamente pronomes demonstrativos, é caracterizado por um objeto extralinguístico: esse dois-pontos pôs uma gravata no “o” de “extralinguístico”. Se o texto está escrito, o leitor pôde por o dedo sobre a referência do respectivo dêitico.

Povo, imprensa e alienação

Mas, o que é uma pessoa? O que é um lugar? E o que é um tempo? Para todo o fim político, são aquilo que o falante fizer que sejam, justamente, através do poder das suas enunciações. “Aqui” é Santa Catarina se eu visar uma audiência nacional; “a cidade está bonita” caracteriza Florianópolis toda vez que me dirijo aos meus conterrâneos. E o mais importante, se lugar e tempo não forem explicitamente mencionados, por padrão trata-se do aqui agora. O aqui e agora, tão conhecidos pelo vulgo sempre bem instruído, são o fundamento da possibilidade da enunciação para quem quiser usar, respectivamente, os termos de Kant e Benveniste.

O clichê estudantil de se iniciar uma dissertação com “Hoje em dia” não se deve apenas ao fato de essa ser uma expressão exaustivamente repetida; ela é repetida justamente porque, alienados no pior e mais profundo sentido da palavra, os estudantes das outras faculdades não sabem que, por padrão, o tempo em que vivem é o presente; o país é o Brasil; o estado é Santa Catarina; a cidade é Ilha e Istmo etc. E assim é adequado mais uma vez avisar: o leitor triunfal que anuncia a convencionalidade das demarcações geopolíticas fica desafiado a indicar qualquer coisa não-convencional.

Porém a condição do estudante das outras faculdades nos leva a mais um eterno e, frequentemente debatido, mistério metafísico: o povo é alienado porque a imprensa o faz assim? Ou a imprensa é alienante para satisfazer a tendência do povo?

Problema global

É claro que o pensador estruturalista dirá que o sentido de um conceito se dá concomitantemente ao contato com o conceito oposto: quem nunca saiu do seu estado natal não tem noção do que é o seu estado; se não conheço outras cidades não sou capaz de avaliar as dimensões da minha. Assim, maior a imobilidade, maior a ignorância. Por outro lado, é uma função exclusiva da cultura escrita inspirar sua comunidade para a mudança, para a jornada, e para todos os grandiosos fins a que se acredita estar destinado o ser humano.

Mas nem todo o ser humano, e especialmente muitos daqueles aos quais o acidente histórico fez portarem passaportes brasileiros, se acredita predestinado às grandes realizações. Em parte porque grandes objetivos podem ser, afinal, apenas tolices nesta terra em que a languidez dos sentidos nos dá acesso quase ilimitado às coisas em si. Em parte porque entre nós os importadores se beneficiam dos royalties que pagamos pelo usufruto das tão populares grandes realizações. Seja como for, e ainda que não se deseje tal coisa, é possível pelo menos imaginar uma atmosfera cultural em que não predomine a alienação, e em que todos os alfabetizados são capazes de compreender as ironias da revista piauí.

Se sagrasse tal atmosfera, o sentido da palavra crise seria outro. Pois atualmente ela é usada para denotar “a crise que não ocorre aqui” porque quando na década de 80 a maioria da população não era capaz de comprar uma geladeira, não existia qualquer crise mundial, mas quando a idade da aposentadoria sobe de 61 para 62 anos, na França, enquanto a propaganda de direita brasileira, por mais que tente, não consegue evitar as boas notícias econômicas por, vá lá, três anos seguidos, então estamos diante de um problema global.

Nesta semana, uma titubeante Christine Lagarde disse a William Waack: “A Europa subestimou a concorrência.” O raro leitor impaciente que chegou até aqui acrescentaria: “Não titubeie, sra. Lagarde. A sra. pode dizer o que bem entender àquele senhor.”

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[Rodrigo Panchiniak Fernandes é professor universitário, Florianópolis, SC]