As transformações pelas quais vem passando o jornalismo nas últimas duas décadas têm estimulado não apenas a revisão dos processos aos quais estávamos habituados, mas também a reflexão sobre a natureza do que se convencionou chamar de jornalismo e o papel que este desempenha nas sociedades contemporâneas, altamente complexas. É bem verdade que essas modificações têm alterado não só a comunicabilidade, mas também a sociabilidade humana, forçando reposicionamentos dos atores. Os meios de comunicação não têm mais a centralidade/primazia/exclusividade que tinham no processo de informação dos cidadãos. A escola e as instituições de ensino, sozinhas, não mais preenchem e atendem às necessidades de conhecimento das pessoas, que buscam formação/instrução/capacitação em outros recursos e fontes. A política e a organização social despertam para movimentos subjacentes ao ciberespaço, onde o ativismo reedita a utopia e renova algum sentido de coletivismo. As relações afetivas e os elos sociais ganham novos contornos com as redes sociais na internet…
Não se pode negar, no entanto, que o conjunto de transformações afeta inexoravelmente as formas massivas e interpessoais de comunicação. Para os profissionais da área, os efeitos são então mais agudos, pois interferem em seus modos de trabalho, em rotinas operacionais, em prerrogativas de atuação. A despeito dos publicitários, “campanhas” são geradas na internet calcadas em processos virais, em estratégias de guerrilha, alargando os horizontes do marketing, da propaganda e das ações relacionadas. Na internet, surgem novos cineastas e videomakers, bem como novos radialistas e editores de e-books. No campo do jornalismo, blogueiros, prosumes, hackers, veículos independentes e iniciativas não convencionais têm redesenhado o mapa, e contribuído para a oferta de novas formas narrativas, de outras modalidades de produção coletiva, colaborativa, participativa.
Mas o que isso teria a ver com a crítica de mídia?
Exercício subjacente
Com a chegada de novos atores no processo de comunicação, com as facilidades de produção e publicação de conteúdos gerados pelos usuários (os antigos receptores, restritos à condição de receptáculos de informação), jornalistas, veículos de informação e audiências têm possibilidades mais efetivas de horizontalizar o diálogo entre quem produz e quem consome. Isso significa também que os públicos têm uma proximidade maior dos produtos jornalísticos e dos contextos que cercam suas emergências.
O cidadão comum, que antes se confinava a encaminhar uma carta queixosa à redação do jornal, passa a mandar um, dois, cinco e-mails aos editores, aos proprietários da empresa jornalística. Mais que isso, o leitor cria um blog em que aponta os erros das coberturas, expõe sua opinião e desagrado. Mais ainda: difunde nas redes sociais suas broncas, cria comunidades no Orkut dos que “detestam tal jornal”, ironiza e ridiculariza a publicação nas plataformas virtuais que frequenta. Isto é, a possibilidade de ter canais para veicular suas reclamações agora confere ao leitor uma dimensão e presença distintas. O diálogo com os produtores é facilitado, mas o que parece mais interessante é o fato de que o leitor pode identificar e encontrar outros leitores com quem tenha afinidades ou sentimentos parecidos relacionados à publicação.
Dito de outra maneira, as potencialidades das redes fertilizam o ambiente da crítica, que não apenas pode ser estimulada – pela facilidade de sua difusão –, mas também pode circular com mais rapidez e efetividade.
Até pouco tempo atrás, os críticos de mídia eram sujeitos posicionados em lugares definidos, autorizados ao exercício da leitura dos meios. Suas análises – nem sempre bem recebidas, muitas vezes ignoradas e não absorvidas – tinham por finalidade apontar falhas, deslizes e inconsistências de um lado. Por contraste, apontavam também o que poderia ser aperfeiçoado, o que deveria mudar. Havia um compromisso entre a função crítica, a literácia midiática e a contribuição para uma evolução dos meios.
Foram também criadas instâncias de emissão dessa crítica: o ombudsman de imprensa e os observatórios de mídia são os mais evidentes lugares desta fala. Enquanto o ombudsman atua como crítico especializado e como representante do público, os observatórios funcionam como arenas onde coberturas são discutidas, condutas são avaliadas e polêmicas, instauradas.
Na primeira década do século 21, alguns pesquisadores lançaram seus olhares para a crítica de mídia tentando visualizar como ela funcionava e se organizava na sociedade. Foram produzidos mapeamentos para a identificação de ombudsman em veículos, observatórios em atividade, conselhos de leitores, publicações específicas dirigidas, entre outras iniciativas. Em algumas regiões, como a América Latina, essa presença devidamente cruzada com o momento de seu surgimento poderia ser indicativo do avanço na redemocratização dos países, do fortalecimento das instituições e do amadurecimento da indústria da mídia. Assim, quanto mais críticos de mídia tivéssemos, mais nossos países gozariam de democracia e nossos cidadãos de liberdade. Por oposição, a redução do número de ouvidores ou mesmo a desativação de observatórios poderia apontar o recrudescimento de regimes e o recuo da política e da cidadania.
Hoje, diante do quadro político na América Latina e no Brasil, talvez não tenhamos elementos para afirmar que haja uma correlação imediata entre o exercício da crítica de mídia e o aprofundamento da democracia. Se antes alimentávamos a hipótese de que a media criticism se desenvolvia por ciclos – ora multiplicando iniciativas, ora, recuando –, atualmente, vejo que é preciso superar esse raciocínio. Talvez a crítica de mídia não seja um fenômeno social com regras estabelecidas e identificadas, e que mais do que cíclico este seja um exercício subjacente à vida contemporânea.
Atitude crítica
Então, é o fim dos críticos do jornalismo? Claro que não, pelo contrário. As transformações das últimas duas décadas ajudam a fortalecer o ambiente de troca de informações, de diálogo e dissenso, de polêmica e de crítica às mais diversas formas de expressão, e de forma privilegiada ao jornalismo. Os observadores convencionais sobrevivem e preenchem ainda a lacuna de uma análise qualificada, privilegiada; a crítica se fortalece, pois se dissemina com mais efetividade e porque permite que outros interlocutores sejam atraídos para a arena de debates. Mas alguém pode temer que, desta forma, a crítica se banalize, fique fragilizada e se esvazie. Corre-se o risco? Talvez, ainda é cedo para dizer, mas deve-se lembrar que democratizar oportunidades e universalizar condições já provocou medo e reações iradas em outras ocasiões da história humana.
Multiplicar a crítica como um gesto de leitura não passiva dos meios e como uma etapa do processo de qualificação da mídia é um risco saudável que se deve correr. Até porque a crítica – é importante reforçar – não significa a prática da demolição e da ofensa, nem do descrédito e do cinismo, muito menos o desprezo do trabalho alheio e a soberba ilimitada. Penso que a crítica deve ser vista como uma forma de ação, um tipo de reflexão que incite práticas direcionadas à melhoria, à busca de parâmetros concretos e alcançáveis de qualidade dos produtos e serviços que os meios oferecem.
A crítica é, então, constituinte de um percurso mais amplo de evolução, que abrange, inclusive, a autocrítica e a revisão de posicionamentos. Para além da prerrogativa antes exclusiva dos ombudsmans ou observadores privilegiados, e para além dos limites dos observatórios, a crítica de mídia deve se alimentar em outras fontes e forças. Ao alargar as suas potencialidades, talvez possamos ver este exercício como uma mirada epistemológica, isto é, um ponto de vista em que se apreende e se constitui um objeto de análise.
A crítica de mídia transcende os confinamentos de uma disciplina, de uma habilidade de poucos eleitos, e se conjuga como uma atitude perante o cenário que se descortina à nossa frente a todo momento. Afinal, ler os meios é ler o mundo.
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[Rogério Christofoletti é professor do Departamento e do Mestrado em Jornalismo da UFSC e pesquisador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS)]