Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo entre duas vertentes

Se há tipos ou gêneros de jornalismo – informativo, opinativo, investigativo, cidadão – existem também vertentes da crítica da mídia, conforme o entendimento do que é o jornalismo e qual a sua missão no mundo. Para analisar essa complexa questão, poderíamos, em primeiro lugar, voltar a um argumento que defendemos tempos atrás, no Mídia & Política: o do surgimento dos observatórios, no fim dos anos 1990, e a justificativa da existência de cães-de-guarda dos próprios meios de comunicação. Como segunda preocupação ligada a esta crítica da crítica, precisamos examinar o jornalismo como prática diária no país e a relação que tem com as teorias da notícia e da informação.

Quando a Revolução Francesa aconteceu, em 1789, a imprensa e os jornalistas tiveram um período áureo: centenas de folhetos, livros e panfletos, e quase 200 jornais diários surgiram no período pós-revolucionário. “O povo queria ser informado. A liberdade de imprensa era ao mesmo tempo o meio e a expressão da nova democracia”, atesta Philippe Minard [MINARD, P. A agitação na força de trabalho. In: Revolução Impressa. A imprensa na França. 1775-1800. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996, p. 155-176]. A imagem de um prelo sendo carregado pela multidão, no dia da Queda da Bastilha, mostra o valor da imprensa à época.

Ao longo do tempo a imprensa ajudou a acabar com os privilégios da aristocracia e do clero, combater as desigualdades, restaurar a liberdade. Porém, desde a lei do selo – de 1765, quando o governo inglês estabeleceu que todos os jornais, folhetos e documentos legais teriam que levar o carimbo da coroa britânica e repassar a verba ao governo –, a tesoura da censura e a vigilância sobre materiais impressos mostram o trabalho dos jornalistas sob observação.

Hoje, os mecanismos de cerceamento à atividade jornalística são condenados, mas a profissão e os produtos dela ainda se encontram sob suspeita. São as pessoas comuns que indagam, questionam e provocam a imprensa, por meio da interatividade proporcionada pela internet, colocando dúvidas sobre a propriedade das empresas, o regime de concessões, sobre o processo de produção da notícia, sobre as fontes e até sobre o papel do jornalista em campo. E, se atualmente proliferam torres de vigilância – tanto quanto câmeras de segurança na via pública –, observatórios existem porque a sociedade mesma indicou a necessidade de um pan-óptico para ver o que acontece na mídia.

Imprensa como instituição

O direito de acesso à informação integra a liberdade de expressão, garantida pelo artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao receber proteção internacional, a informação foi alçada à condição que os teóricos vêm sempre defendendo, de bem simbólico destinado ao uso por toda a sociedade. No caso dos jornalistas, informação é notícia. É a notícia que assegura a transparência dos governos e a correta aplicação dos dinheiros públicos, embora não apenas isso: também na esfera privada estão os olhos e ouvidos, os sensores da imprensa que transformam fatos em notícia. Ferramenta fundamental para o exercício dos direitos individuais e coletivos, a comunicação ágil beneficia cada ser humano e toda a comunidade, que passa a manejar a faca e o queijo para tomar decisões.

“Jornalismo deve ser alguma coisa mais do que cantar no banheiro ou proferir solilóquios, embora manificentes, no deserto”, disse Walter Lippmann [LIPPMANN, W. Uma imprensa livre. In: AMARAL, L. Técnica de jornal e periódico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: INL, 1978]. O jornalismo, como resultado da prática cotidiana de milhares de profissionais no globo terrestre, não é um monólogo de alguns poucos privilegiados dedicado a uma audiência escrava, que finge estar escutando. A comunidade é pautada pelo noticiário e se beneficia dele para compreender, situar-se, inteirar-se, dialogar, criticar o mundo da vida. A liberdade de informação constitui uma salvaguarda da democracia, em que o acesso à notícia, aos bens culturais e à alfabetização (inclusive digital) deveria estar na cartilha dos direitos humanos, apesar de nem sempre ser seguida.

E qual a função do jornalismo? Nas escolas aprendemos que a carreira deve zelar por três objetivos: formar – é a função educativa dos meios; informar – refere-se à tarefa de fazer circular os dados; e entreter – ajudar na busca da felicidade. Encarada como pretensiosa por estudiosos do espectro da Comunicação e afins (publicitários, mercadologistas, sociólogos, antropólogos, historiadores), essa missão é o que explica a dedicação de tantos profissionais em tantos lugares do universo. Enfim, a boa e velha vontade de mudar o mundo. Mudar o mundo como? Pelas próprias pessoas, por suas próprias mãos, na medida em que se informam e aprendem a ver melhor o que está acontecendo e que lhes é levado pela notícia.

Pois bem: vista desta maneira, essa vertente do jornalismo é gêmea do jornalismo informativo, aquele que tem como missão básica informar, e como metas a objetividade, a isenção, a imparcialidade, a neutralidade. É o gênero jornalístico que acredita no poder dos dados, do livre fluxo do noticiário como instrumento do esclarecimento, o que não se dá sem alguns pressupostos, já mencionados: liberdade, acesso à informação, alfabetização e consciência política.

Em outra vertente está o jornalismo opinativo, entre os quais inclui-se o jornalismo cidadão, quando procura, como na época de Mirabeau e Robespierre, fazer a cabeça do leitor e lutar ao lado dele por causas consideradas nobres. É um tipo de jornalismo que não tem pejo em opinar ao fim ou dentro dos textos, a fim de mostrar ao leitor o lado bom, azul ou róseo das políticas públicas ou ao contrário, a banda podre dos problemas urbanos e rurais do país, crendo que aqui reside a missão do jornalismo e do jornalista. Não deixando ao leitor o papel de interpretar e, sim, conduzindo o raciocínio, agregando explicações, levando-o pela mão, tirando conclusões.

Note-se que o termo mídia, embora seja o plural de medium, costuma ser usado de forma pejorativa: quando se fala em imprensa, o tom é de distanciamento; quando se diz mídia é para depreciá-la. Portanto, ao se cobrar da crítica da mídia o papel de colocar o dedo na ferida e apontar os desmandos, uma corrente advoga que o jornalismo deve falar mal da mídia, ao mesmo tempo em que se engaja em campanhas pelos direitos da criança, do idoso, dos pedestres e dos ciclistas, vestindo a camisa dos revolucionários franceses, e defendendo a imprensa como instituição. A outra corrente adverte para os erros cometidos pelos excessos, pela falta de técnica, pela pressa, e também pelo preconceito e falta de ética, por traição aos princípios do formar-informar-entreter, não, porém, se imiscuindo no terreno da privacidade, da intimidade e do ego de cada cidadão.

Qualidade em discussão

No panorama dos cibermeios (meios jornalísticos na rede mundial de computadores), os desafios do jornalista contemporâneo poderiam ser assim resumidos: a) quanto às tecnologias da informação e das comunicações (Tics) – a internet dissocia o jornalismo da geografia, rompe laços afetivos com o produto da comunicação [KOVACH, B.; ROSENSTIEL, T. Os elementos do jornalismo. São Paulo: Geração Editorial, 2004]; b) quanto à globalização – noção de cidadania e comunidade fica obsoleta; c) quanto à conglomeração – mediocrização dos conteúdos, mcdonaldização (pasteurização) do jornalismo [JORGE, T.M. Mcdonaldização do jornalismo, espetacularização da notícia. In: revista Estudos em Jornalismo e mídia. Florianópolis: UFSC, ano V, n. 1, 2008, p. 25-36]. É pesada, portanto, a carga sobre os ombros do jornalista.

Os jornalistas da linha informativa, que engloba também o jornalismo de investigação, se recusam ao papel de atuar deliberadamente como guia ou chefe espiritual das populações. A corrente das hard news continua a acreditar na informação por si só, na notícia como produto do jornalismo que oferece dados, ao mesmo tempo em que educa, instrui e diverte, porém, sem se meter nas decisões que a própria sociedade irá tomar, uma vez que se conscientize e se inteire da situação que vive, por meio da própria notícia.

Não se trata de defender a pena de morte nem os abusos do capitalismo, muito menos agressões aos direitos humanos: é somente uma maneira de confiar no próprio poder da notícia como ferramenta de conscientização e no arbítrio individual e coletivo. E é o que basta. A crítica da mídia que cobra da imprensa um papel integrado à sociedade corresponde às linhas do jornalismo opinativo, cívico, participativo e cidadão; a crítica da mídia entendida como exercício do jornalismo informativo entende a mídia como lugar de divulgação, transmissão das informações, absorvendo a tarefa de cão-de-guarda das instituições públicas e particulares e mantendo-se neutra quanto aos desígnios dos cidadãos, em pleno uso de seu direito à informação.

Num tempo em que vínculos afetivos encontram-se ameaçados; a ideia de cidadania e de comunidade vem sendo confundida com presença nas redes virtuais, e em que a qualidade dos serviços jornalísticos está posta em discussão, a crítica da mídia necessita se posicionar e verificar de que ângulo está observando a imprensa. Talvez seja o caso de ter ela mesma um pan-óptico para ter uma visão total, mais abrangente, do objeto examinado: os medium ou a media.

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[Thaïs de Mendonça Jorge é professora da Faculdade de Comunicação da UnB, pós-doutora em Tecnologias da Informação e da Comunicação pela Universidade de Navarra, integra a linha de pesquisa Jornalismo e Sociedade na PPG-FAC e é membro-pesquisadora do Nemp]