Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rebeldia midiática

No fim de setembro, quem passasse próximo à Praça do Papa, em Vitória, podia observar barracas montadas e pessoas dispostas a enfrentar dias de sol e chuva para, simplesmente, serem as primeiras a entrar no show do grupo Rebeldes – a uma semana do espetáculo, lá estavam os fãs, dispostos a agüentar sete dias de espera, sete dias de ansiedade e fantasia.


Esse fato é bem seletivo. Quando há a necessidade de tratar de algo realmente importante, ou mesmo de solucionar um problema, a paciência não é a mesma. Nos bancos, nos supermercados, nos consultórios, e até nos Procons, as pessoas ficam, muitas vezes, ansiosas e até revoltadas com alguns poucos minutos de espera. Mas na hora de esperar os Rebeldes…


Produto


Acredito que o consumidor tem, sim, o direito de ser respeitado e não precisar aguardar momentos intermináveis por um serviço ou para ser atendido. Há, por exemplo, uma lei (Lei Estadual 6.226/00) que determina que o tempo máximo de espera em bancos é de 10 minutos, e muitos consumidores conscientes fazem valer os seus direitos. Mas, para esperar a abertura dos portões de um show, esforços não são medidos. E lá se foi o povo e, entre ele, os rebeldes, com seu desespero, seu tumulto, enfim.


O indivíduo não faz isso por necessidade, por imposição, ou porque vai obter alguma vantagem. Ele faz porque ama a banda, porque acha que vai vê-los em alguma posição privilegiada. Com esse tipo de atitude, podemos até analisar a questão do que se torna prioridade. As músicas do grupo interferem na vida das pessoas ao ponto de fazê-las gastarem uma semana inteira de suas vidas a troco de nada. Apenas para desejá-los, sonhar com o grande dia. E nada de concreto. Apenas uma coisa explica essa loucura toda: o poder da mídia.


A questão da interferência da mídia no cotidiano, nos diálogos, nas atitudes e na vida das pessoas, que é a essência do conceito de agenda setting, fica clara num exemplo como esse. Os meios de comunicação geram uma personalidade, na verdade, um produto, e a maneira como ele é apresentado ao público forma elementos que vão direcionar, inclusive, a ação de leitores, telespectadores, ouvintes.


Idolatria


Isso se explica muito bem num trecho de autoria de Shaw: ‘As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos mass media aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas’. É a própria confirmação da antropológica do espelho. A mídia apresenta e o público digere, na maioria das vezes da mesma forma e com a mesma relevância. Seja o que for.


Bem, não vou questionar a relevância, a musicalidade ou critério algum dos Rebeldes. Cada um tem seu estilo e preferências, e aqui não vou expor as minhas. Mesmo assim, não acho que Rebeldes deveria ser prioridade na vida de ninguém (imagine ficar uma semana acampado para esperar um grupo chegar? É muito desgaste). Acho que as pessoas devem ter mais controle de si mesmas e estruturar melhor a sua escala de valores. Não dá pra parar o tempo por causa de um desespero que, na verdade, é mais uma fantasia criada pela mídia. E o desespero é sem dimensões: basta lembrar, por exemplo, do tumulto que ocorreu no início deste ano, quando três pessoas morreram durante tarde de autógrafos num hipermercado em São Paulo. E muitos outros aconteceram.


A idolatria chega ao extremo, e isso prejudica o próprio público, que, acredito eu, nem se dá conta de que extrapolou limites e partiu da admiração para a loucura. A mídia apenas mostra que o grupo é o máximo, e o receptor assimila a informação com desejo, com o fervor de ser como aquilo ou querer aquilo para si. Enfim, nada contra os Rebeldes. Apenas contra a rebeldia dos seus fãs.

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Jornalista, Vitória