Tem sido comum encontrar em jornais e revistas matérias ditas profundas sobre este e aquele assunto. Os profissionais da imprensa falam com familiaridade de tudo, estejam ou não entendendo do que estão falando, escrevendo, reverberando, repercutindo. Querem – e com toda a razão – o direito de deitar falação sobre qualquer assunto que esteja piscando em suas telas mentais. O trabalho de explicador ainda é propriedade – não exclusiva, é claro – dos que trabalham com a informação. Daí a necessidade de destrinchar termos acadêmicos, siglas pouco mencionadas, conceitos nebulosos e quase sempre expostos, mas não compreensíveis ao cidadão ou cidadã comum.
Um bom exemplo é explicitar o que seria há menos de três anos o Roadrunner e o significado de um petaflop. Pois bem, em 9 de junho de 2008, a IBM veiculou um press release divulgando um supercomputador ultrarrápido. Como seu nome sugere, o Roadrunner (“corredor de estradas”) é realmente um sistema veloz, processando um petaflop por segundo. O que é um petaflop? Boa pergunta. É um quatrilhão de cálculos por segundo. A IBM percebeu que o número não faria sentido para a grande maioria dos leitores e, então, acrescentou a seguinte descrição:
“Qual é a rapidez de um petaflop? Muitos notebooks. Equivale, aproximadamente, ao poder de cálculo combinado de 100 mil dos notebooks mais rápidos da atualidade. Seria preciso uma pilha de notebooks com 2,4 quilômetros de altura para se igualar ao desempenho do Roadrunner.
“Seria necessário que cada habitante da Terra – cerca de 7 bilhões de pessoas – trabalhasse com uma calculadora, à taxa de um segundo por cálculo, por mais de 46 anos, para fazer o que o Roadrunner consegue processar em um único dia. Na última década, se fosse possível que os carros reduzissem seu consumo de gasolina na mesma proporção que os supercomputadores melhoraram seu custo e sua eficiência, eles hoje estariam percorrendo 85 mil quilômetros com um litro de combustível.”
A opção já é uma escolha
Existem coisas que podem ser explicadas através de raciocínios simples. E não há complexidade que resista a uma boa explicação. E existem inúmeras figuras de linguagem e metáforas que podem fazer um oceano ser contido em simples xícara de chá. Mas existe um assunto que nunca é bem explicado pela mídia, em especial a grande mídia: o que significa mesmo esse tal de Marco Regulatório da Mídia (MRM)?
A julgar pelo que é veiculado sobre o assunto nos grandes jornais – O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo – e através das grandes emissoras de televisão, com a TV Globo à frente, o nome do MRM não é outro que censura em estado bruto, intervenção do Estado na vida da sociedade, uma violência contra um dos mais fundamentais direitos da pessoa humana – o direito à livre expressão. Mas será que é isso mesmo?
A adoção de MRM não seria uma chamada aos carretéis do longo novelo de linha que mistura interesses absolutamente privados dentro de uma fachada francamente favorável ou em benefício da sociedade? Não teria chegado o momento de entender que somos livres a partir do momento em que estamos aptos a aceitar as consequências de nossa liberdade? Será que ser livre não exige que sejamos conscientes de nossas atitudes e escolhas, pois o ato de escolher infere uma consequência e a opção de não escolher – por si só – já é uma escolha? Será que estou me aproximando mais de um petaflop livre, leve e solto, e não de um petaflop devidamente apresentado, contextualizado?
As declarações de Christine Lagarde
Por que é tão difícil entender que existe uma diferença brutal entre censura estatal e a adoção de um marco regulatório da mídia? Porque há muita má vontade de quem se sente no dever e no direito de apontar os erros, pecados, crimes, contravenções, ilicitudes e ilegalidades cometidos por terceiros, principalmente se este for governo ou estiver legitimamente representando algum dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E, também, porque não existe qualquer grama de interesse em mostrar, de maneira clara e transparente, que os veículos de comunicação não existem para manipular a opinião pública, nem para instrumentalizar desejos e benefícios privados. É bem próprio da natureza humana desejar tutelar os demais e resistir a qualquer forma de tutela para si mesmo.
Se os meios de comunicação tratassem seus pares, isto é, os meios de comunicação concorrentes, com o mesmo apetite jornalístico com que trata denúncia de corrupção em uma área governamental, teríamos um debate sobre assunto bastante substancial e a sociedade teria a ganhar com isso. Mas não é assim que as coisas acontecem. O proprietário da revista “A” fecha negócio milionário com o governo do estado “B” e, além das assinaturas vendidas, entrega ao governante uma linha editorial auxiliar em que dará projeção e foco a tudo o que lhe possa melhorar a imagem junto à população que o elegeu, ao mesmo tempo em que varrerá para debaixo do tapete todos aqueles sintomas de corrupção que ele, o meio de comunicação, costuma denunciar com grande estardalhaço se ocorrer nas cercanias do governo do estado “C”.
Reflitamos por alguns minutos sobre o comportamento de nossa grande imprensa na quinta-feira (1/12/2011). Nesse dia, os jornais deram imenso destaque a mais uma denúncia em desabono à permanência de Carlos Lupi à frente do Ministério do Trabalho e Emprego. O assunto que não baixará a poeira enquanto a demissão de Carlos Lupi não for encontrada no Diário Oficial da União, foi manchete na capa do principal jornal do país e continuou a ter destaque na escalada de notícias de nosso telejornal de maior audiência.
É óbvio que o assunto só mereceu este tratamento por clara opção editorial e não, em absoluto, por conter suma importância jornalística. É que no mesmo dia esteve visitando o Brasil a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde. A executiva-mor do sempre combatido FMI se encontrou, em Brasília, com a presidenta Dilma Rousseff e saiu do gabinete presidencial com frases como “o Brasil está mais protegido que outras nações contra a crise econômica”, “a economia brasileira está bastante sólida, o sistema bancário bem capitalizado”, além de outros rasgados elogios à gestão da economia brasileira.
Vindo de quem vem, no momento em que a crise econômica continua atingindo em cheio nada menos que a nata dos países mais desenvolvidos do mundo, incluindo as principais nações europeias e os Estados Unidos, chega a ser inimaginável pensar em relegar tais frases (e em tal contexto) a um segundo plano em qualquer escala disso que chamamos valor-notícia.
Acelerar o debate
Mas isso aconteceu. E continuará acontecendo. E pelo andar da carruagem não tardará o dia em que leremos nos jornais a demissão anunciada, um a um, e com várias semanas de antecedência, de todos os integrantes do primeiro escalão do governo federal. Serão demitidos por vários motivos. E dentre estes devido à baixa resistência da autoridade-alvo ao bombardeio midiático pesado, aquele em que balas de verdade se misturam a torpedos de festim e em que denúncias bombásticas costumam se mostrar completamente infundadas e mesmo assim ainda se mesclam a denúncias que merecem, no mínimo, passar por investigação séria a ser conduzida pelos órgãos competentes.
O curioso é que os meios de comunicação não receberam um mísero voto das urnas, aquele lugar onde a população costuma se expressar na escolha de seus legítimos representantes, mas entende ser seu direito aceitar ou repudiar este ou aquele nomeado por quem de direito – no caso, a presidenta da República – para exercer função elevada na condução dos destinos da nação.
Enquanto alinhavo esses pensamentos, me vêm à mente algumas declarações de Judith Brito, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha, no diário carioca O Globo (18/3/2010):
“A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo.”
Feitas essas considerações, expresso estes pensamentos imperfeitos e penso que temos mais é que acelerar o debate sobre a necessidade de um marco regulatório das comunicações no Brasil.
Motivos não faltam.
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]