Brasília é importante, lavagem de dinheiro é importante, eleição do ano que vem é importante. Mas os meios de comunicação esqueceram o que é mais importante: o dia a dia de seus clientes. Mais micro, menos macro. Nicolas Sarkozy e Angela Merkel, sim; mas também a falta de remédios essenciais.
Podemos começar por aí: o Lotensin, para pressão alta e insuficiência renal crônica progressiva, remédio de uso contínuo, desapareceu das farmácias há uns bons meses. O fornecedor, Novartis, uma gigantesca multinacional de origem suíça, não explicou o motivo da falta, mas garantiu que na primeira quinzena de dezembro o fornecimento estaria normalizado (ver nota abaixo). Não está: nem precisa fazer força para confirmar a falta do remédio, basta tentar comprá-lo nas farmácias da internet. Cadê a reportagem, caro colega? Pode-se ouvir não apenas a multinacional, mas também os médicos que receitaram o Lotensin e perguntar qual o substituto que indicam. A Anvisa, imagina-se, deve ter algo a dizer. E o ministro da Saúde, sempre tão falante, vai ficar quieto?
Continuemos nos problemas da vida cotidiana com a banda larga de internet. As operadoras vendem bandas de determinada capacidade, cobram por essa capacidade, mas só se consideram obrigadas a fornecer 10% daquilo que vendem e pelo qual cobram. Ao contrário do caso do remédio, que só prejudica clientes e suas famílias, as operadoras de banda larga vendem produtos de uso amplo. Jornalista, por exemplo, usa internet e paga caro; recebe só 10%. E fica quietinho. Uma advogada de São José dos Campos, SP, Tânia Lis Tizzoni Nogueira, pediu ao Ministério Público que entre no caso. E a imprensa, quieta.
Façamos uma analogia: de repente, a concessionária de energia resolve fornecer só 10% do seu consumo doméstico, mantendo embora a conta nos mesmos níveis. Ou o caro colega compra um tremendo carrão e, pelo preço do carrão, recebe uma lata velha que nem o programa do Luciano Huck vai conseguir consertar. Ou, em vez do carro com motor de 200 cavalos, recebe um com motorzinho de 20 pôneis malditos. Qual a diferença entre esse tipo de esperteza do fornecedor e o que ocorreu com a tal banda larga? Por que um valeria matéria, e das grandes, e o outro merece apenas o silêncio obsequioso dos meios de comunicação?
O consumidor de informação tem o direito de esperar dos veículos alguma preocupação com aquilo que o afeta diretamente. Se estes veículos não se preocupam com o cliente, por que o cliente vai pagar por eles?
O remédio que sumiu
Pense naquele seu parente ou amigo que tem pressão alta e a controla com remédios; pense na aflição que tem ao descobrir que o remédio sumiu. Claro, ele pode ir ao médico, pagar nova consulta e perguntar qual o substituto adequado para o fujão. E poderia ter apoio da reportagem, não é mesmo?
Este colunista perguntou à Novartis, fabricante do Lotensin, o que estava acontecendo. O atendimento foi rápido e gentilíssimo; mas, se o contato com a imprensa foi ótimo, a multinacional continuou deixando seus clientes ao sol e ao sereno.
Em nota escrita, a Novartis informou que todas as versões de Lotensin em blisters de alumínio “permanecem com vendas normais”. Este colunista procurou as maiores redes de farmácias do país e recebeu explicações desencontradas, desde o “não trabalhamos com este produto” até “está em falta”, incluindo o “foi trocado por este aqui, que é o mesmo mas tem uma substância que o torna mais eficiente, pode levar que é quase igual”. Nas pequenas farmácias, também não há o remédio.
Segundo a empresa, só deixou de ser vendido o Lotensin acondicionado em frascos plásticos. “A Novartis está trabalhando para que o restabelecimento da distribuição dos produtos desta linha seja normalizado na primeira quinzena do mês de dezembro”.
É curioso: se os produtos em blisters de alumínio permanecem com vendas normais, vão normalizar o que? E, além de curioso, não deu certo: a primeira quinzena de dezembro já passou e o remédio continua sumido.
Alô, repórteres! Alô, meios de comunicação! Este colunista adoraria ouvir as explicações dos dirigentes da multinacional em programas de rádio e TV, para que o público soubesse o que fazer. Que tal essa idéia de pauta?
A hora do repórter
A imprensa entrou firme no caso do ministro Fernando Pimentel e de suas consultorias. Falta agora investigar outro caso, o do livro de Amaury Ribeiro Jr. que aponta irregularidades em privatizações (no governo Fernando Henrique) e acusa José Serra, amigos e parentes de participação em irregularidades. Já há, de um lado e de outro, fortes esforços propagandísticos: há quem diga que Amaury é um dos melhores repórteres que já apareceram no país e vem sendo ameaçado desde que resolveu apurar as histórias que geraram o livro, o que demonstra que incomodam, e muito, os acusados; de outro, que Amaury foi várias vezes indiciado em inquérito, que enfrenta suspeitas de ter pago para obter quebras de sigilo bancário de tucanos, de ter integrado um grupo, no comitê de campanha de Dilma Rousseff, para forjar dossiês contra o adversário José Serra (o que explicaria, aliás, por que Serra é o protagonista do livro, numa fase em que está longe do auge político).
Acontece que o mais importante, no caso, não é a análise do autor do livro: é saber se o que ele denuncia é verdade ou não. A imprensa tem de investigar os fatos por ele denunciados com o mesmo vigor que demonstra, no momento, no caso de Fernando Pimentel. Quanto a Amaury Ribeiro Jr., se cometeu ilícitos, que seja processado por eles; mas isso não significa que, caso tenha cometido esses ilícitos, os fatos que denunciou deixem de ser verdadeiros, não mais exijam investigação e se torne desnecessário o máximo aprofundamento. O que não se pode é, por discordar do autor e de seus métodos, botar uma pá de cal no caso e fingir que não aconteceu nada.
A questão de fundo é simples: ou Serra foi envolvido injustamente no caso (e uma boa investigação de imprensa contribuirá para comprová-lo, e o ajudará nos processos que certamente moverá), ou esteve envolvido e deve explicações. Também pode ser que os casos sejam reais, mas Serra não esteja envolvido; nesse caso, quem esteve?
Pimentel, em resumo
Uma beleza o resumo do caso Pimentel que a sempre precisa Ruth de Aquino, em Época, elaborou. Um trecho:
“Por que a Eta Bebidas do Nordeste, uma fabriqueta de guaraná em copo, não gaseificado, com sede em Pernambuco, pagou R$ 130 mil de consultoria a Fernando Pimentel?
“Por que a Eta negou o contrato e, no dia seguinte, voltou atrás?
“O que Pimentel sugeriu como estratégia, já que a fábrica está em processo de liquidação?
“Por que o superconsultor Pimentel resolveu dar um gás numa bebida de R$ 0,50 que fazia propaganda no Ratinho e contratava meninas em jogo do Sport com o Santa Cruz?
“Afinal, ele assessorava a Federação das Indústrias de Minas e os consórcios de construtoras que farão obras na Copa.
“Eta ferro, ministro. Olhando de fora, nada disso parece fazer o menor sentido em seu currículo.”
Os puritanos
Não deixa de ser curioso: o jornalismo frufru, que vive há décadas do noticiário sobre o comportamento dos ídolos, é provavelmente o mais setor mais conservador dos meios de comunicação. O jornalismo internacional cobre com a maior desenvoltura, sem preconceitos, os divertidos protestos em topless da Ucrânia; o jornalismo econômico apenas registrou, com bom-humor, os comentários do então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi sobre determinadas qualidades da primeira-ministra alemã Angela Merkel. Já, para o frufru, aquelas coisas óbvias que muita gente faz para ganhar espaço nos meios de comunicação (sair do carro sem calcinha, dar um jeito de o seio sair do vestido) são tratadas como desvios das boas normas de conduta.
Alguns exemplos:
** “Perdendo a linha – estrelas tropeçam, se envolvem em escândalos sexuais, brigas e mostram mais do que deviam”.
E quem define o que é mostrar apenas o que deviam, cara-pálida? Que é um escândalo sexual: homem com homem, mulher com mulher? Se for com crianças, não é escândalo: é crime.
Mais?
** “Sabrina Sato ousa no decote mais uma vez”
Digamos que Sabrina Sato não ousa: tem seios bonitos, não se opõe a mostrá-los e já fez fotos muito mais explícitas – dispensando, por exemplo, o uso do decote.
Mais?
** “Vânia Love erra na roupa e mostra além da conta”
Ou:
** “Vânia Love exagera no decote e quase mostra o que não devia em seu aniversário”
De novo, quem determina qual é a conta certa? Que é um decote sem exageros? Quem determina o que a jovem deve ou não mostrar?
Pior ainda foi a chamada de um grande portal noticioso: definiu-a pela cor da pele e pela família, quando nada disso tinha importância para a notícia. Foi chamada de “a mulata irmã de Wagner Love”. Certamente o portal não se referiria a Eike Batista como “o branco ex-marido de Luma de Oliveira”. Mais do que conservadorismo, que jeito chato e ruim de ver a vida.
Bom livro
Liana Gottlieb, doutora em Comunicação, acaba de lançar Interfaces da Comunicação, Cultura e Educação. O projeto é muito bem bolado: seu objetivo é selecionar boas monografias universitárias, hoje presas ao circuito acadêmico, e colocá-las nas livrarias, ao alcance do público interessado. É para quem gosta do tema; no caso, é das melhores obras disponíveis.
Isso, Palmério
Palmério Dória de Vasconcelos, bom repórter, excelente texto, gente fina, está na campanha para melhorar o texto dos meios de comunicação. De seu twitter:
“O melhor repórter do Brasil chama-se Suposto. Devia ser no mínimo presidente da Associação Brasileira de Imprensa”.
Como…
De um grande portal noticioso:
** “Sorriso, bocejo, cara de mal: Neymar faz caras e bocas em entrevista”
A campanha para melhorar o texto dos veículos de comunicação será dura, caro Palmério (ver nota acima): há coisas muito “mau escritas”.
…é…
De um grande jornal, de circulação nacional, referindo-se a uma bomba dos tempos da Segunda Guerra Mundial que foi encontrada na Alemanha:
** “ (…) e a bomba foi desativada com sucesso. Cerca de 2,5 pessoas, entre policiais, bombeiros e médicos participaram da operação (…)”
Quem será essa meia pessoa que ajudou na desativação?
…mesmo?
De um grande portal noticioso, ligado a um jornal de prestígio:
** “Assim, os países terão cinco anos para ratificá-lo em seus países””
Parece que os países não apenas os ratificarão em seus países como até os aplicarão em seus países.
E eu com isso?
Tem bandido, polícia, história do crime. E não é noticiário policial, não: é o político mesmo. Só que é mais difícil de entender: os participantes são mais sofisticados, conhecem melhor as várias maneiras de tomar o dinheiro dos outros. Nada do “passa a grana senão te mato”. Embora, no fim, o efeito seja o mesmo: o nosso dinheiro muda de mãos e passa a ser dinheiro deles.
Então, vamos ao noticiário realmente sério, aquele que anima os bate-papos das tardes tranquilas:
** “Aparecida Petrowky alonga e clareia as madeixas em salão no Rio de Janeiro”]
** “Bárbara Evans no Twitter: ‘gostaram do meu peito caído?’”
** “Filha de Madonna é fotografada com amigo”
** “Atores de Rebelde são flagrados em aeroporto no Rio de Janeiro”
** “Katherine Heigl revela que deseja ter três ou quatro filhos”
** “Ísis Valverde vai ao Cirque du Soleil”
** “Janaína Jacobina diz ter dado o primeiro beijo aos 18 anos”
** “Famosos circulam com seus cães, vão às compras, às praias e jantam fora”
** “Adriane Galisteu e outros famosos participam de festa beneficente”
** “Jessica Alba leva filha para conversar com o Papai Noel”
O grande título
“É Natal”, como John Lennon não nos deixa esquecer jamais. Época de presentes e compras, como a propaganda não nos deixa esquecer jamais. Época de pensar muito menos nos títulos, no sentido das frases e nos seus significados secundários (como este colunista sempre procura não esquecer).
** “Homem leva morre com choque ao colocar painel publicitário em escola”
Pressa, apenas pressa: modifica-se um pedaço da frase e se esquece de acertar o resto. Mas também o descuido que permite duplo sentido:
** “Em noite de Chana, handebol feminino do Brasil vence a favorita França”
E aqueles cuja obviedade só é percebida quando são lidos ou vistos:
** “Você sabia que o câncer infantil é o mais difícil de ser diagnosticado nas crianças?”
Mas em que faixa etária esperavam encontrar câncer infantil?
Há títulos que podem ser lidos de várias maneiras:
** “Maratona reúne 300 vestidos de Papai Noel em Catanduva, SP”
Não só revela as roupas que Papai Noel usa debaixo daquele casacão como nos conta que os vestidos do bom velhinho ainda correm!
O grande título da semana se refere ao cozinheiro Edu Guedes (que deve ter ficado meio perplexo ao lê-lo):
** “Lombo do Edu Guedes fica suculento”
O caro leitor já pensou com uma pimentinha e farofa da boa?
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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados Comunicação]