O acesso a dados contábeis das empresas de comunicações no Brasil é, certamente, uma das maiores dificuldades que o estudioso enfrenta. Tratados como segredo comercial, é praticamente impossível obter informações relativas a faturamento, fonte e distribuição por veículo de investimentos publicitários, empréstimos, dívidas ou lucros dos grandes grupos de mídia. Com isso, é sempre difícil avaliar com segurança – sobretudo para os não iniciados no mundo das finanças, como o signatário – qual o peso relativo dos investimentos de diferentes setores da atividade econômica no conjunto dos recursos que são destinados à grande mídia privada.
Um exemplo dessa dificuldade tornou-se público recentemente no embate judicial que travam a CartaCapital-Mino Carta e Veja-Diogo Mainardi. Um dos pontos em debate é o volume de publicidade do governo federal que a CartaCapital receberia. A revista de Mino Carta afirma que esse volume não passa de 30% e é inferior ao que recebe a revista Exame, da Editora Abril. Já no artigo objeto da ação judicial por difamação, o articulista de Veja diz que 70% da publicidade de CartaCapital vem do governo federal.
Retomo o assunto a propósito de afirmação que fiz em artigo anterior (OI nº 407) sobre o Estado brasileiro ser – direta ou indiretamente – uma das principais fontes de financiamento da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica (‘Comunicação democrática: Quem financia a mídia pública?‘). Pelo menos um leitor questionou minha afirmação como incorreta.
Utilizo a palavra ‘financiamento’ no sentido que o verbo ‘financiar’ tem no dicionário, isto é, prover as despesas de; custear. No caso, refiro-me, portanto, ao conjunto dos recursos públicos que fazem parte do ‘custeio’ das empresas da grande mídia, que as ajudam a manter-se em funcionamento. Isso inclui, dentre outros, isenções e incentivos fiscais para importação de equipamentos e matéria-prima; ressarcimento fiscal; empréstimos de bancos oficiais; os patrocínios; a publicidade legal (editais, balanços) e a publicidade da administração pública direta – governos federal, estaduais e municipais – e da administração indireta, tanto das empresas que concorrem como das que não concorrem no mercado.
Dessa forma, o cálculo dos valores envolvidos nesse largo espectro de recursos públicos não é tarefa fácil. Essa, creio, é mais uma razão pela qual eles não são facilmente conhecidos.
Dados não-oficiais
Um exemplo desses recursos públicos – sempre ausente da agenda pública de discussão – é o ressarcimento fiscal. Durante a última campanha, a Receita Federal informou que o horário eleitoral ‘gratuito’ custaria aos cofres públicos cerca de 191 milhões de reais em ressarcimento fiscal às empresas privadas de radiodifusão, aliás concessionárias de um serviço público. Para algumas dessas concessionárias, o horário eleitoral ‘gratuito’ acaba sendo um excelente negócio uma vez que o ressarcimento, estabelecido na Lei Eleitoral, é calculado aos preços correntes da tabela publicitária, raramente praticados na negociação rotineira com os anunciantes.
No que se refere especificamente aos investimentos publicitários, existem estudos publicados e também percentuais que circulam não-oficialmente entre agências e institutos de pesquisa especializados. Como esses percentuais se referem a médias gerais, é impossível a avaliação comparativa dos investimentos nos principais grupos de mídia do país. E é necessário, também, que se tenha o devido cuidado para não reduzir a ampla questão dos financiamentos públicos apenas aos investimentos publicitários.
O jornalista Fernando Rodrigues, por exemplo, tem acompanhado os investimentos publicitários do governo federal de forma sistemática. Em novembro de 2003, com base em dados do Monitor Plus/Ibope e de pesquisa própria sobre grandes anunciantes governamentais (‘Gasto oficial responde por 7% do mercado publicitário’, Folha de S.Paulo, 10/11/2003), ele estimava que os governos federal, estaduais e municipais eram responsáveis por 7,13% de tudo o que se investiu em publicidade no ano de 2002. Comparativamente, esse percentual era o maior de 14 países, entre os quais se incluíam Estados Unidos e Alemanha.
Já em janeiro de 2005, estimava que a despesa total média com propaganda (incluindo a produção, a propaganda legal e os patrocínios), somente do governo federal, de 1998 a 2004, girava em torno de 1 bilhão de reais por ano. Isso fazia do governo federal o maior anunciante do país (‘Governo terceiriza gasto com publicidade’, Folha de S.Paulo, 3/1/2005, pág. A-6).
Outra matéria publicada em abril (‘Gasto de Lula com publicidade sobe R$250 milhões em 2004’, Folha de S.Paulo, 8/4/2005, pág. A-4), estimava que o investimento em publicidade do governo federal, em 2004, ficava abaixo apenas daquele das Casas Bahia, o maior anunciante empresarial do país.
Já em setembro do mesmo ano, Rodrigues estimava que os gastos públicos totais com publicidade alcançariam cerca de 3 bilhões de reais – ou mais de 3 vezes os valores totais de inserções publicitárias do governo federal (‘Governos gastam R$ 3 bilhões por ano com propaganda no Brasil’, Folha de S.Paulo, 5/9/2005, pág. A-10).
Somente para o governo federal, a estimativa para a propaganda legal era de cerca de 65 milhões de reais e para os patrocínios, de 200 milhões de reais. Acrescidos os valores estimados para os governos estaduais e municipais – cerca de 1,5 bilhão de reais/ano – chegava-se ao total de 3 bilhões de reais.
Há dados não-oficiais que falam de percentuais de 6,4% em 2004 e de 5,5% em 2005 – um ano atípico – relativos ao investimento publicitário público total.
Autorizações de veiculação
Ainda com relação especificamente aos investimentos publicitários, o Grupo de Mídia de São Paulo, na sua publicação anual Mídia Dados, traz tabelas sobre os maiores grupos empresariais anunciantes e sobre os maiores anunciantes – governos federal/estaduais/municipais, mas não tem uma tabela única sobre os maiores anunciantes. Na tabela sobre o investimento publicitário total por setor econômico, que tem como fonte o Monitor Plus/Ibope, existe um setor identificado como ‘serviços públicos e sociais’ que em 2005, por exemplo, ficou em sexto lugar no ranking. Mas o Mídia Dados não explicita se os investimentos desse setor correspondem a recursos públicos e os critérios utilizados pelo Monitor Plus/Ibope para a classificação dos setores econômicos só estão disponíveis, presumo, para assinantes do serviço.
O governo federal, por outro lado, disponibiliza no site da Secom informações sobre investimento publicitário em mídia da administração direta e indireta, mas não traz os dados sobre os governos estaduais e municipais. Ademais, não existem dados comparativos com o investimento privado e os valores divulgados não incluem a publicidade legal, os patrocínios e nem a produção.
Existe ademais uma importante questão adicional que dificulta a avaliação comparativa dos investimentos publicitários públicos e empresariais na mídia privada: os cálculos usualmente divulgados para a publicidade empresarial referem-se ao monitoramento do espaço/tempo ocupado pelos anúncios que é, então, multiplicado pelo valor de tabela usado pelos respectivos veículos de comunicação. Não são, portanto, levados em conta os descontos por volume, uma prática usual no setor. Já no caso da publicidade governamental, os números divulgados pela Secom referem-se aos valores de investimento obtidos através das próprias autorizações de veiculação. Verifica-se, dessa forma, uma enorme potencialidade de distorção para maior dos valores relativos ao investimento na publicidade empresarial.
Dados confiáveis
De qualquer maneira, uma simples comparação entre os últimos valores publicados pelo Mídia Dados 2006 do investimento em publicidade dos 30 maiores anunciantes empresariais e o investimento dos 30 maiores anunciantes dos governos federal/estaduais/municipais, revelará que empresas públicas como Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – se incluídas num ranking comum – estariam hoje folgadamente entre os 15 maiores anunciantes do país.
Diante dessas considerações, do amplo histórico da dependência financeira de empresas de mídia do Estado brasileiro, e apesar da impossibilidade de se fazer as devidas comparações, ainda assim existe um conjunto de indicações que permite supor que o Estado de fato é, direta ou indiretamente, uma das principais fontes de financiamento – no sentido amplo que estamos dando à palavra – da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica.
Se algum leitor dispuser de dados confiáveis de fontes públicas que desmintam a afirmação acima, fica o convite para que os revele. Assim não restará dúvida sobre a importância dos recursos públicos como uma das fontes de financiamento da mídia privada no Brasil.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)