Mais uma vez me dirijo ao ilustre jornalista Alberto Dines acerca de seu artigo do domingo, “Um ano sem fim de ano”. Não há dúvida de que deve ter parecido frustrante a todos a posição da Grã-Bretanha com relação ao pacote de salvamento do euro. Como brasileiro, em princípio não devo me imiscuir nas questões europeias. Mas, tendo vivido naquele país por quatro anos e meio e sendo admirador dos britânicos, passei a ter uma ideia – muito incipiente, é verdade – de como eles encaram sua relação com a Europa. A pergunta a fazer aqui é: sentem-se os britânicos verdadeiramente europeus? Desde a invasão normanda de 1066, os ingleses praticamente não têm lutado contra tropas estrangeiras em seu solo (ok, as ilhas do canal foram invadidas pelos alemães na 2ª Guerra). Em 1215, tornou-se a Inglaterra a primeira monarquia parlamentar do mundo, quando o rei John teve de aceitar a Magna Carta. As ligações das casas reais daqueles tempos fizeram com que os ingleses tivessem alguns domínios na França. A vacância do trono francês levou à Guerra dos Cem Anos entre os dois países, que foi travada basicamente na França. Os ingleses, ao término do conflito, mantiveram apenas Calais, que os franceses reconquistaram um século depois. A Grã-Bretanha, portanto, passou a ser uma nação insular, status que mantém até hoje. Isso, é claro, não impediu que ela tivesse um papel fundamental na história europeia e mundial. Desde a fracassada tentativa espanhola, sob Felipe II, de tomar sua nação, tornaram-se os britânicos os donos do mar (como bem espelha a canção patriótica “Rule Britannia”). No início do século 19, foi a Grã-Bretanha o contraponto a Napoleão Bonaparte, impedindo que o imperador francês tornasse meia Europa parte do seu império. Um século mais tarde, mais uma vez os britânicos, em duas oportunidades, brecaram o expansionismo alemão. Na segunda delas, sozinhos por uns bons dois anos e meio. Depois de 1945, o mundo mudou bastante. Fieis a suas tradições, os ingleses nem tanto. Amigos de mais idade que fiz na Inglaterra me diziam que era muito comum os jornais ingleses, falando sobre o tempo, anunciarem “nevoeiro no Canal; continente isolado”. O Canal em questão é, para quase todo o mundo, o Canal da Mancha. Para eles, é o English Channel, ou apenas o Channel (Canal). (Para que mais? Todo o mundo sabe ou deveria saber que ele é inglês.) E, devido ao nevoeiro, não é a Grã-Bretanha que fica isolada do continente (que é como eles se referem ao resto da Europa), mas exatamente o oposto. Evidentemente que, em 1957, foi a Grã-Bretanha convidada a assinar no Tratado de Roma que criou a Comunidade Europeia. Mas evidentemente ainda, recusou, só aceitando entrar uma década e meia mais tarde. De maneira esperada, não entrou a Grã-Bretanha na Zona do Euro. Eles jamais trocariam sua tradicional e amada libra por uma moeda usada pelo resto da Europa. E nem haveria necessidade de se fazer um referendo entre os britânicos sobre a aceitação de uma constituição europeia. Um país que funciona, até hoje, tão bem sem uma Constituição escrita por seus cidadãos, como iria aceitar uma Constituição escrita por outros? Por mais que se queira dirigir impropérios aos súditos de Elizabeth II, as pessoas deveriam compreender que sua nação é, querendo ou não, especial. A Europa tem várias casas reais, algumas bem mais antigas que a de Windsor. Alguém se lembra do casamento de alguma princesa espanhola, ou de príncipe dinamarquês? Mas quem se esquece dos casamentos de Charles e William? Uma nação como a Grã-Bretanha sempre estará pronta a dar apoio a iniciativas em prol de seus aliados (como o fez em tantas ocasiões do passado, inclusive com substancial perda de vidas). Mas dificilmente irá aceitar que controlem sua maneira de agir, que mexam em suas tradições, que mudem sua “britanicidade”, se é que a palavra existe. Em relação a isso, o mundo tem um precedente não muito antigo. Quando os americanos tomaram o Japão após a rendição, em 1945, o general MacArthur foi nomeado governador do país ocupado. Diante das atrocidades cometidas pelos japoneses na Coreia, na Malásia e nas Filipinas, e menos de quatro anos depois do ataque a Pearl Harbor, chegava o momento da vingança dos americanos – e de seus aliados – contra o imperador Hirohito. Ao contrário. MacArthur compreendeu que qualquer represália contra o “deus que é humano” dos japoneses seria um erro fatal, que logo jogaria todo o país contra a América, e o manteve no trono. Ele, ao menos em vida, jamais foi responsabilizado por crimes de guerra. Graças a isso, o Japão é hoje – mesmo sendo um país oriental – inteiramente sintonizado com o Ocidente. Assim, há que se ter paciência. A Europa encontrará uma saída. E dificilmente aparecerá sem a Grã-Bretanha. Não tenho dúvidas de que um consenso será encontrado, pois, muito mais do que eu, haverá europeus em postos-chave que saberão que é possível lidar com a Grã-Bretanha desde que não lhe pisem no que ela acha que são seus calos (Heldio Villar, professor, Recife, PE)