E se o famoso quarteto de escritores mineiros – Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Helio Pellegrino, Paulo Mendes Campos – fosse, na verdade, um quinteto? Para começar, o personagem oculto deveria ter sido amigo íntimo dos outros quatro; pertencido à mesma geração que “puxava angústia” nos bancos da praça da Liberdade, em Belo Horizonte; trocado cartas com Mário de Andrade; ido ganhar a vida no Rio; vivido e pensado o Brasil politicamente; sonhado com a literatura e a realizado, esbanjando talento.
Só um homem – aos 87 anos, com a cabeça inteiramente branca, mas voz, gestos e passos ainda firmes devidos à ginástica diária – cumpre todos os requisitos da lista: o jornalista Wilson Figueiredo, quinto elemento que, mineiramente, desdenha a glória. “Os quatro formavam um grupo fechado, cuja harmonia se devia a, quando estavam em três, falar sempre mal do ausente”, diz à Folha.
Ele lembra com clareza a ocasião em que esbarrou na turma pela primeira vez. Tinha 18 anos e morava numa pensão na rua da Bahia. Estudante primeiro de Medicina, para satisfação do pai, e depois de Letras, por inclinação própria, não demorou a ficar amigo do futuro crítico de teatro Sábato Magaldi, primo de Hélio Pellegrino. Feitas as apresentações, jamais esqueceu o fornido capote preto de Otto Lara Resende e o ar levemente desolado de Paulinho Mendes Campos: “Logo o Hélio me apelidou de Figueiró. Pegou.”
Também fazia parte do grupo o jornalista político Carlos Castello Branco, o Castellinho, que um dia perguntou àquele jovem de bigodinho que vivia sobraçando livros: “Sabe datilografar? Não tem problema. Aprende.” Como redator e tradutor da Agência Meridional, foi um dos primeiros brasileiros a saber da explosão da bomba atômica em Hiroshima, à medida que as agências internacionais despejavam quilômetros de telegramas.
Capixaba
Ao contrário do que se tem como verdade inquestionável, Figueiró não é mineiro. Nasceu na pequena Castelo, no Espírito Santo, descendente de austríacos pelo lado do avô materno. “Não é minha culpa não ter nascido em Minas. Imperdoável é nunca ter enfrentado o medo de voltar a Castelo para acertar contas íntimas”, revela ele, que mora no Rio desde 1966. Na época comprou a preço de ocasião um apartamento no Leblon, assumindo as dívidas do antigo proprietário, o sempre enrascado financeiramente Nelson Rodrigues. Lá viveu 30 anos e, quando mudou de rua, continuou no bairro.
Quando ainda vivia em Belo Horizonte e Mário de Andrade visitou a cidade, em 1944, o jovem jornalista estava na estação de trem para recebê-lo. Mal o mito modernista embarcou de volta – após noites regadas a chope e sambas em dueto –, iniciou-se a correspondência. “Meu caro Figueiró”, escreveu Andrade, “acabo de ler seus versos. Você já é poeta, mas só não será poeta como constância de sua vida se não quiser. Se, quando você chegar aos 38 ou 40, lembrar que foi poeta e virou funcionário público, ‘argentinos’ de velhas de estações de águas, ou pai de família só, Figueiró, não bote a culpa na vida, o culpado será você.”
Depois de tal incentivo, o novato tratou de pegar o touro à unha. Com o material publicado na revista Edifício – criada por ele, Sábato Magaldi, Autran Dourado e Francisco Iglesias –, lançou os volumes Mecânica do Azul, em 1946, e Poemas Narrativos, em 1948. Sábato ainda hoje reconstitui, de cabeça, os versos “Nomes das mulheres que amei me sobem à boca/ com golfadas de sangue e choram aos meus ouvidos”.
Mas o próprio poeta não estava satisfeito com o resultado. Mandou recolher as edições quando apenas uma pequena parte delas chegou às livrarias. “De maneira geral, não sou indeciso. Mas, para mim, literatura funciona dialeticamente: gosto e já não gosto.” O jornalismo, que cada vez lhe ocupava mais tempo, sempre serviu de explicação para o abandono da poesia. O que poucos sabem – só a mulher, Lourdes, os quatro filhos e amigos mais chegados – é que ainda mantém uma relação secreta com as musas. Jamais parou de escrever, em recolhimento. As gavetas estão abarrotadas. E tomou a decisão de abri-las. Figueiredo vai lançar um novo livro, com a produção poética dos últimos 50 anos, provavelmente em 2012.
Desgraçado
Hoje, ao reler os poemas da juventude, sente-se melhor. Tanto que permitiu a inclusão de um deles, “Close-up de uma Segunda-Feira”, no recente E a Vida Continua: A Trajetória Profissional de Wilson Figueiredo [Ouro sobre Azul, org. Moacyr Andrade, 220 págs., R$ 85]. O volume traz vasta iconografia e cronologia, além de artigos esparsos de Figueiredo, que contribui ainda com depoimentos escritos especialmente para a edição.
Com 65 anos de jornalismo – desde 2004 trabalha na agência de comunicação interna e externa FSB, sentindo-se à vontade no chamado “outro lado do balcão” – o homenageado não gosta de pensar que possa ser o mais antigo profissional em atividade no país. “Há de haver outro desgraçado, e ainda mais velho, por aí”, brinca. Entre seus planos, além do livro de poesia, estão as publicações de uma coletânea de artigos políticos e outra com seus prefácios.
A trajetória até aqui é espantosa: como repórter, redator, editor, colunista, cronista ou editorialista, cobriu o fim do Estado Novo, a Constituinte de 1946, o suicídio de Getúlio Vargas, os anos JK, as loucuras de Jânio Quadros (chegou a prever, com dias de antecedência, a renúncia), os anos da ditadura, as Diretas Já e a redemocratização, a saída de Collor, os tempos de instabilidade política com FHC e Lula.
Sua casa, o Jornal do Brasil. De novo pelas mãos de Castellinho, chegou ao prédio da avenida Rio Branco, no Rio, em 1957, no limiar de uma revolução. O primeiro passo da famosa reforma do JB, comandada por Amílcar de Castro na parte gráfica e Janio de Freitas na Secretaria de Redação, foi retirar os classificados da primeira página. Na verdade, por décadas eles permaneceram disfarçados em forma de “L”, privilegiando-se o texto sem fios, fotos maiores e a manchete em oito colunas.
Chefe do copidesque do JB na época, o poeta Ferreira Gullar, hoje colunista da Folha, recorda que Figueiredo, ocupando cargos de chefia no processo de renovação, “falava a linguagem da gente”. Para muitos, ele era a encarnação do jornal. “Me deu o primeiro emprego de repórter e, na greve de 1962, tentou de todas as maneiras impedir que eu fosse demitida – infelizmente, sem sucesso”, lembra a escritora Ana Arruda Callado. Com a reforma consolidada e o prestígio do JB em alta, comandava a reunião dos editorialistas numa mesa de mogno. Redigia os longos textos assinados pelo diretor Nascimento Brito, segredo que toda a redação conhecia. E arrumava tempo para inventar bossas, como a coluna política “Informe JB”, da qual foi o primeiro titular.
“Figueiró guardou seu talento na seção de editoriais do JB. Por certo alcançaria projeção como ensaísta, comentarista político e, não tenho dúvida, cronista: escreve magnificamente, é bem-humorado, perceptivo e amplamente culto”, elogia Janio de Freitas, hoje também colunista da Folha. Só deixou o jornal em 2003, o princípio do fim levado a cabo pelo empresário Nelson Tanure, que, após deixar falirem a Gazeta Mercantil, em 2009, e o JB, em 2010, ficou conhecido como “coveiro de Gutenberg”.
Rubor
“Amigos, vivemos uma época lívida, em que ninguém se ruboriza mais, ou por outra: o único sujeito que ainda se ruboriza, no país e no mundo, é o Wilson Figueiredo”, escreveu Nelson Rodrigues em crônica de 1963.
Nos bons tempos do JB da avenida Rio Branco, costumava receber na redação a visita do amigo Nelson. Com ilustres de carne e osso – Pellegrino, Mendes Campos, José Ramos Tinhorão, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Corção –, Figueiredo acabou personagem do romance Asfalto Selvagem, obra de ficção que deveria ser editada com índice onomástico.
Na trama do folhetim publicado em 1959 no jornal Última Hora, o juiz de direito Odorico Quintela tem duas obsessões: a bela protagonista Engraçadinha e… Otto Lara Resende. Para conquistar a primeira, vale-se da ajuda do segundo, ou melhor, de um soneto de Otto. Quem fornece a dica dessa preciosidade poética é Wilson Figueiredo, com a ressalva de que o soneto havia sido pensado de trás para frente e dele só se escrevera de fato a chave de ouro: “E entrego o corpo lasso à cama fria.”
Com essa enorme bagagem, Figueiró, ao acordar todos os dias bem cedo e imediatamente iniciar a leitura dos jornais, ainda se pergunta: “Por que não se faz uma campanha na imprensa contra a corrupção nos cargos públicos?”
Como se vê, continua sendo o único sujeito que ainda se ruboriza no Brasil.
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[Alvaro Costa e Silva é jornalista]