Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo não é caridade

É o que pensa o IRS, órgão responsável por cobrar impostos de pessoas físicas e jurídicas nos Estados Unidos. O órgão tributário federal norte-americano vem pressionando os periódicos sem fins lucrativos para “que abandonem seus procedimentos, mudem suas políticas e modifiquem a incorporação de artigos, removendo a palavra “jornalismo”, pois “esta não é uma causa de caridade”, informou Kevin Davis, diretor-presidente da Rede Investigativa de Notícias (ICC) ao Save The News (5/12), uma organização não governamental voltada para a reforma da mídia.

O Serviço de Renda Interna (IRS) é a versão americana da nossa Receita Federal e tem uma visão bastante estreita do jornalismo: se não há dinheiro, não é jornalismo. Pois este só pode existir sob a forma de um negócio sustentado por anunciantes. Noticiar sem pagamento de anunciantes levantou suspeita por parte da autoridade fiscal americana de ganhos ocultos. Estão a desconfiar dos procedimentos para financiamento das publicações de jornalismo independente que trabalham fora das expectativas do lucro.

Os Estados Unidos têm uma forte tradição de jornalismo sem fins lucrativos. Durante décadas, organizações desta natureza produziram o melhor do jornalismo americano, explicou Josh Stearns ao Save The News (5/12). O autor tem razão. Quem pode ignorar a Associated Press, a National Geographic ou a Mother Jones? As organizações de notícias não lucrativas estão sob o amparo legal da seção_501(c)3_, do Serviço de Renda Interna, e estão isentas de pagamento de impostos federais. Mas exatamente quem pode ser incluído no dispositivo legal que isenta a cobrança de impostos federais? O site do IRS informa que as “organizações de caridade, religiosas, educacionais, órgãos de testes de segurança pública, promoção de esportes e competições amadoras nacionais e internacionais e a prevenção de crueldade contra crianças e animais” não precisam pagar tributos federais.

Jornalismo de mercado

Mas o IRS vem segurando e adiando pedidos de inclusão de novas publicações independentes. Criando dificuldades para o surgimento e expansão destes informativos. Desconfiando de suas práticas de financiamento e impedindo o desenvolvimento de um setor muito importante do jornalismo. As organizações noticiosas sem fins lucrativos lutam para obter o status de associações de caridade, ou de educação, nos Estados Unidos Mas serão mesmo? Informar sem pagamento é um ato de caridade, de educação, ou serviço cívico? Josh Stearns, jornalista do Save The News, acredita que o jornalismo deva ser definido como serviço vital a sociedade. E eu concordo com ele.

A tensão entre o jornalismo independente e o lucro tem sua gênese no surgimento do jornalismo moderno, no século 17, quando as gazetas europeias (começando provavelmente pela Gazeta de Veneza), introduziram os anúncios pagos. Estes, por sua vez, reduziram o custo dos exemplares, tornando os jornais populares. Mas o custo da popularização dos periódicos foi a perda relativa de sua independência como agentes informadores da sociedade (Jorge Pedro Souza, Uma Breve História do Jornalismo no Ocidente, 2008, BOCC).

Dois séculos depois, o poder dos anunciantes já era suficiente para Engels acreditar que o financiamento dos periódicos pelos negócios iria irremediavelmente comprometer a integridade da informação. Para ele, o jornalismo como negócio sustentado por anunciantes iria contaminar as pautas dos jornais com os interesses de seus financiadores. O benfeitor e amigo de Karl Marx tem razão em grande parte: o jornalismo de mercado leva a marca dos interesses de seus patrocinadores. Mas o jornalismo independente recusa-se a entregar os pontos aos interesses do mercado.

Cobrir custos com receita não é lucro

Por isso é visto com desdém corporações mundiais de notícias e com desconfiança pelos governos. O caso da má vontade da Receita Federal americana com informativos independentes nos Estados Unidos ilustra bem a situação.

Os americanos parecem desconfiar que as receitas das entidades sem fins lucrativos na verdade estejam a esconder lucros não declarados. Receita e lucro são coisas diferentes, mas diferença não é tão óbvia a ponto de evitar a confusão entre as duas. No dia 26 de novembro de 2009, a jornalista Ana BraMbilla escreveu um artigo intitulado “Site 2.0 não é instituição de caridade”, onde ela diz que:

“… Há quem pense que ser 2.0, horizontal, colaborativo é o mesmo que fazer caridade. Se assim fosse, o YouTube não teria sido vendido por US$ 1,6 bi.

“Oras! O YouTube não é um espaço colaborativo? Não é onde qualquer pessoa pode tornar pública a sua produção em vídeo? Pode se manifestar? Onde qualquer internauta ganha poder de fala sem pagar um tostão por isso? Então o Google deveria ser uma entidade beneficente? Uma espécie de organização sem fins lucrativos?

“Não sejamos ingênuos! Qualquer produto ou serviço disponível na rede tem seu preço. Talvez quem o pague não seja o consumidor final, mas alguma empresa que aposta naquele espaço para ter visibilidade. E isso é absolutamente natural! Basta pensarmos que plataformas de conteúdo colaborativo não apareceram por geração espontânea. Alguém trabalhou sobre seu desenvolvimento, há custos com sua manutenção. Assim, para sua sobrevida saudável, a geração de receita não transforma a iniciativa em algo ‘do mal’.”

A autora, além de apresentar uma visão pouco generosa do jornalismo colaborativo, não foi capaz de diferenciar receita de lucro. Pois cobrir custos com receita não é lucro. Ela não soube fazer a distinção entre os dois. O YouTube é colaborativo, mas é orientado pelo lucro. Uma entidade sem fins lucrativos poderá ter uma receita que para garantir sua viabilidade econômica, mas nunca lucro. Ela não se apropria de nenhum excedente e não pode apresentar lucro em seu balanço. Um serviço pode ter preço e a entidade ou pessoa que o produz pode ter receita, mas isto não se traduz necessariamente em geração de lucro.

Arauto de interesses

O lucro é a diferença entre a receita e os custos de produção, como o pagamento dos trabalhadores, da matéria prima e de todos os custos fixos. Receita são os rendimentos que uma empresa ou entidade econômica recebe, sejam estes subvenções, subsídios, créditos ou pagamentos em dinheiro. A receita entra na conta do lucro, e não pode ser confundida com ele. Receita não é lucro. Nas organizações sem fins lucrativos, a receita menos os custos deve ser igual a zero ou negativa, pois não há realização de lucro. A autora confundiu as duas categorias da economia em seu artigo. Mas o IRS não confunde receita com lucro. Desconfia que as empresas independentes de notícias estejam a esconder lucros em seus balanços. Parece acreditar que as contas de algumas das mais famosas instituições podem estar “maquiadas”. Mais uma pá de cal numa parte fundamental do jornalismo que vem passando por dificuldades sérias nos últimos tempos.

Quem acredita e luta por uma imprensa verdadeiramente livre não pode perder de vista a dimensão humanitária do jornalismo. Este não deve estar sempre associado à civilização do dinheiro. O crescimento do ‘jornalismo empresarial’ deve ser limitado neste momento por uma versão mais humana e social da atividade. A subordinação excessiva ao lucro destrói a credibilidade do jornalismo.

Jornalismo não é caridade? Talvez não seja, mas é totalmente compatível com ela. Segundo o dicionário Caldas Aulete, “caridade” significa “sentimento e atitude de apoio aos necessitados”. O verdadeiro jornalismo, independente ou não, precisa de bondade e compaixão. Sem sua dimensão humana e compassiva, o jornalismo se apequena, transformando-se em mero arauto de interesses econômicos e políticos hegemônicos. A sociedade não precisa de atividades sociais de informação que negam apoio e ajuda aos que mais precisam.

A faísca do jornalismo do futuro

Ignorar o aspecto caritativo, educacional e cooperativo do jornalismo é também um grande erro estratégico, pois as organizações independentes do lucro sempre ajudaram a indústria de notícias e os jornais tradicionais a absorver o impacto da competição no mercado. O caso da AP é emblemático: criada em 1846 por jornais americanos de Nova York, ela ajudou a arrefecer a selvageria competitiva da imprensa no século 19 e por quase todo o século passado. Hoje, no século 21, ela e suas irmãs morrem à míngua, em meio à abundância de informações transmitidas pela web.

Não é justo nem certo deixá-las desaparecer. “Melhor mídia depende de melhores políticas para a mídia”, defende a Free Press há muito tempo. “A solução política é clara e a necessidade de agir não poderia ser maior. Não se trata de tentar salvar o passado do jornalismo. É sobre tentar acender a faísca do jornalismo do futuro”, concluiu o Save The News. Só resta acrescentar que os jornais americanos e europeus não estariam numa situação tão ruim se o jornalismo independente não tivesse sido abandonado a sua própria sorte.

***

[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]