Um ano já se passou desde que a Corte Interamericana de Direitos Humanos anunciou sua decisão sobre o caso do Brasil e a guerrilha do Araguaia. A resposta do governo a esse caso histórico encerra implicações importantes para o modo como o Brasil vai se unir ao resto da América Latina em reparar as atrocidades de direitos humanos cometidas durante a era militar e firmar-se como líder moderno do século 21 nas questões críticas de responsabilização e transparência.
A corte decretou que o governo brasileiro devia assumir a responsabilidade clara pela morte e pelo desaparecimento de mais de 60 guerrilheiros na região do Araguaia nos anos 1970 e que “deve continuar a desenvolver iniciativas para a busca, a sistematização e a divulgação de todas as informações sobre a guerrilha do Araguaia, ao lado de informações sobre as violações dos direitos humanos ocorridas durante o regime militar”.
Essa cláusula na decisão sobre o Araguaia a torna histórica. É a primeira vez em que uma sentença internacional reconheceu que, para as vítimas e as suas famílias, o direito à informação é por si mesmo um dos direitos humanos. De fato, ocultar, acobertar ou distorcer informações, como militares brasileiros vergonhosamente vêm fazendo há quase quatro décadas, é “comparável à tortura”, a corte declarou claramente.
A resposta do Brasil à cláusula sobre o direito à informação vem sendo ambígua. Os militares, sempre recalcitrantes, têm-se negado a cooperar com a ordem da corte de transferir para o Arquivo Nacional todos os documentos militares e de inteligência sobre a campanha de contra-insurgência no Araguaia, reivindicando, como de praxe, que tais documentos não existem mais.
Luz sobre abusos
Os generais brasileiros também impediram a nova lei da Comissão da Verdade de responsabilizar legalmente quaisquer ex-oficiais pelas atrocidades que cometeram, como os massacres do Araguaia. Contudo, em 18 de novembro, a presidente Dilma sancionou a lei sobre a Comissão da Verdade, sancionando também, e pela primeira vez, uma lei que cria um sistema de liberdade de informação. De fato, a Lei de Acesso à Informação contém cláusula especial que reforça o poder da Comissão da Verdade: ordena a liberação de toda a documentação histórica relacionada a violações dos direitos humanos.
Se a experiência dos países latino-americanos com legislação semelhante servir de indicativo, porém, será preciso a atuação dos grupos que lutam pelo acesso à informação, como a Abraji, e de outros grupos de direitos humanos, como o Cejil, o ativismo das famílias das vítimas e a autoridade dos membros da Comissão para de fato trazer esses registros para domínio público. Com tudo o que ela precisa fazer, a Comissão também terá que assumir a responsabilidade por definir, identificar, localizar e exigir a liberação de todos os principais arquivos de documentos que tratam de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.
Para obter o mosaico histórico completo da repressão, a Comissão deveria também entrar em contato com outros países possuidores de arquivos relevantes, incluindo os EUA, cujos arquivos secretos podem lançar luz considerável sobre abusos no passado brasileiro.
Avanço dos direitos humanos
A verdade é como um gênio da garrafa; uma vez liberada, ganha poderes mágicos. A implementação bem-sucedida da Comissão da Verdade e da Lei de Acesso à Informação é a primeira linha de ataque à imunidade que por tanto tempo escondeu os criminosos. Atenderá essencialmente às vítimas e suas famílias, que vêm lutando com tenacidade para saber a verdade.
Mas cumprir o que prevê a decisão da Corte Interamericana também fará o Brasil avançar como sociedade civil moderna e beneficiará o avanço dos direitos humanos na região como um todo. Por essas razões, a comunidade internacional de direitos humanos está observando e aguardando (tradução de Clara Allain).
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[Peter Kornbluh dirige o projeto Documentação do Brasil no National Security Archive, em Washington (EUA), centro de pesquisa sobre acesso à informação e documentos antes sigilosos liberados para consulta]