Nesta quinta-feira (15/12), uma das agressões mais vergonhosas à cultura brasileira completou 35 anos. Em 15 de dezembro de 1976, o então ministro da Justiça do governo Geisel, Armando Falcão, com base na Portaria n.º 8, 401-B, proibiu a circulação e venda em todo o território nacional do quarto livro de contos de Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo, sob a alegação de que suas histórias exteriorizavam “matéria contrária à moral e aos bons costumes”. Foi o maior presente natalino da ditadura militar ao obscurantismo naquele ano, de resto farto em abusos censórios.
A agressão chegou com pouco mais de um ano de atraso. Parafraseando o Millôr, nas ditaduras fardadas “a justiça farda mas não talha”. Best seller desde o lançamento, pela editora Artenova, em outubro de 1975, e já na terceira reimpressão, o livro de Rubem Fonseca desapareceu subitamente das livrarias. E desaparecido ficou até 1989. Treze meses para ser proibido, 13 anos para ser liberado. A proibição de Feliz Ano Novo foi o mais longamente discutido escândalo lítero-jurídico do regime militar.
Para quem não o leu (a Nova Fronteira reeditou-o este ano), são 15 contos que espelham, sem rebuços, a violência urbana, especificamente no Rio, já uma cidade sem lei e cindida por malignas desigualdades sociais que nas quatro décadas seguintes só iriam piorar. O autor merecia um prêmio qualquer por sua profética crueza, não a perseguição que lhe moveu o mais repugnante ministro da Justiça desta República, ex-aequo (e ex-equus) com Alfredo Buzaid, ocupante da pasta no governo Médici.
“Alusões desmerecedoras ao trabalho censório”
Ao cobrir o livro de elogios na Veja, Affonso Romano de Sant'Anna fizera uma ressalva involuntariamente premonitória: “Uma leitura superficial desta obra pode tachá-la de erótica e pornográfica.” Como leitor superficial era o que mais havia nos altos escalões da ditadura, tachado de obsceno e pornográfico o livro entrou no index prohibitorum dos milicos. Um manifesto “pela liberdade de expressão”, assinado por 1.046 intelectuais, reagiu de pronto ao ucasse do dr. Falcão. Juristas questionaram a falta de embasamento legal da portaria, “uma ação profundamente farisaica”, protestou o sempre veemente psicanalista Hélio Pellegrino. Pelos critérios invocados para justificar a cassação de Feliz Ano Novo, salientou o poeta Gerardo Mello Mourão, as obras de Dante, Cervantes, Goethe, Shakespeare e outros gigantes da literatura mundial também deveriam ser tiradas de circulação.
Da trincheira oposta, uma patética saraivada de festim. A um repórter que ingenuamente contava com sua solidariedade a Rubem Fonseca, o escritor cearense Nertan Macedo, áulico da ditadura e então assessor do ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen, declarou “ignorar o assunto” de propósito, “para não fazer publicidade de autores idiotas”. Com intelectuais assim, para que censores? No mesmo dia, o nada saudoso senador potiguar Dinarte Mariz, folclórica figura da Arena, partido oficial do governo, não só se revelou espantado e arrepiado (sic) com os contos de Feliz Ano Novo (“pornografia de baixíssimo nível, que não se vê hoje nem nos recantos mais atrasados do país”), como propôs que Rubem Fonseca, além de censurado, fosse preso.
Em 2 de maio de 1977, Rubem Fonseca ajuizou ação ordinária contra a União, reclamando a ilegalidade do ato arbitrário e pleiteando sua anulação. O pedido foi julgado improcedente. Três anos depois, os advogados do escritor apelaram da sentença no Tribunal Federal de Recursos. Obrigada a explicar-se, a Censura alegou que Feliz Ano Novo retratava, “em quase sua totalidade, personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática da delinquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referência a sanção, utilizando linguagem bastante popular e onde a pornografia foi largamente empregada, com rápidas alusões desmerecedoras aos responsáveis pelos destinos do Brasil e ao trabalho censório”.
Jogo duro até o fim
Resumindo: crime só com castigo – e elogios aos agentes da lei.
Convocado a avaliar o arrazoado da Censura, o crítico literário Afrânio Coutinho não deixou de pé uma só aleivosia. Em seu parecer, transformado em livro sobre literatura e erotismo, editado pela Cátedra, eximiu Rubem Fonseca de qualquer transgressão à lei: “O fato de usar quadros da vida real – sexo, violência, miséria – não quer dizer que ele os aprove ou desaprove. Simplesmente descreve-os, testemunha-os, usando, para ter mais eficiência artística, todos os recursos que a arte literária antiga e atual coloca à sua disposição.”
Dois procuradores da República e um juiz, cujos nomes merecem ser esquecidos, socorreram a arbitrariedade do governo com novo estoque de despautérios, acusando o escritor de “dar voz a conversas de subgente”, a “tipos patológicos” cujas atividades poderiam levar “certos leitores a cometer atos de natureza degradante”. Quando o caso ainda estava sub judice no Tribunal Federal de Recursos, Deonísio da Silva publicou um ensaio a respeito, O Caso Rubem Fonseca: Violência e Erotismo em Feliz Ano Novo (Alfa-Ômega, 1983), que forma, com o parecer do professor Afrânio Coutinho, um autêntico J'Accuse tupinambá.
Para defender a liberdade de Rubem Fonseca escrever como bem entendesse, seus advogados tiveram de esperar o fim da ditadura. Aí apelaram para o Tribunal Regional Federal, instância criada pela Constituição de 1988, onde, por dois votos a um, ou seja, jogo duro até o fim, o livro foi liberado em 1989. De volta às livrarias, como sói acontecer, vendeu horrores. Nada supera o marketing da censura.
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[Sergio Augusto é jornalista e escritor]